domingo, 15 de maio de 2022

PE. CORREIA DA CUNHA – O RAPTO DA NOIVA

 





O CASAMENTO NÃO SE REALIZOU…



Havia na Rua de São Vicente um estabelecimento que muita gente não enxergava.
Não o viam pela aquela imensa agitação de sombras de vultos que o frequentavam e vibravam de ímpetos incoercíveis. Uma discreta placa, na ombreira da porta do prédio, anunciava uma ervanária, no 2º andar, para além da comercialização de ervas medicinais, constituía a justificação para outras actividades de caracter esotérico.

O oficiante era um jovem com formação superior, que após ter sofrido um violento acidente rodoviário, ficou paraplégico, vivendo ali na companhia da sua mãe pessoa de idade já avançada. Sem locomoção, sentado na sua cadeira de rodas, iniciou-se por meio de muita leitura de literatura e estudo profundo nessas áreas, tornando-se um conhecedor dos segredos de todas as plantas e através delas possuidor de poderes para lidar com o sobrenatural. Há época, era comentado por muitas pessoas do bairro, que naquele estabelecimento havia um homem de grandes virtudes, detentor de dons de feiticeiro, curandeiro, médium, parapsicólogo, bruxo… No edifício a atmosfera era de misticismo e secretismo. 

Muita gente ali se deslocava para procurar a constante resolução dos seus problemas de saúde física, conflitos com a vizinhança, conflitos conjugais e até amorosos. O ervanário usava o seu autoproclamado dom que lhe rendia algum bom dinheiro, permitindo que vivesse ele e a mãe com bastante conforto. Havia nas imediações uma jovem donzela, bonita, elegante que levava uma vida austera de trabalho. Era tímida e muito reservada. Nunca se lhe conheceu namorado. Só era vista diariamente nos seus passos sempre apressados de casa para o trabalho e vice-versa. Era funcionária nas OGFE (Casão). Vivia um mundo à parte dos demais. Aos domingos frequentava a sua paróquia, onde assistia à missa e rezava concentrada na pureza da sua fé. Da história familiar não tive tempo de saber muito, apenas que se tratava de uma família humilde e que a jovem era muito apegada à sua mãe. Soube mais tarde que a sua mãe e tia frequentavam consultas na ervanária. A mãe da jovem carregava consigo um grande sofrimento e um doloroso sentimento de culpa por haver negligenciado que aquele ser humano, não se tivesse desagarrado de si (era uma pera pronta a morrer na pereira), pois o tempo corria velozmente e não via na filha qualquer sedução de buscar um caminho de Felicidade. O seu sonho de ser avó desvanecia-se, assim como os pensamentos deslumbrantes ruíam sem esperanças. Porque não levar a filha consigo a uma consulta com o fitoterapeuta, para que este a ajudasse a encontrar um novo universo e quem sabe um príncipe encantado?

Avançou na ideia. Num final de dia entrou no gabinete acompanhada da sua filha, quando a luz do sol produzia uma ilusão subtil e serena. Uma luz calma que confortava a alma dos que buscavam soluções para os seus problemas. Algo ali se passou ao fim de algumas consultas. A jovem revirou-se na cadeira onde estava sentada, recebendo uma convocação misteriosa. Estava enamorada daquele sujeito que precisava de cuidados e, acreditava que assim, seria amada com segurança e confiança, adaptando-se ao extremo, esquecendo-se de si mesma. Na mesma semana se transferiu da sua casa, para ficar junto do seu amado. Passados uns meses toda a documentação estava pronta para que se celebrasse o sacramento do matrimónio. Era uma servidora da mística, servindo aquilo que de mais belo havia no seu destino. A celebração do casamento teria de ser nas instalações da ervanária, devido ao facto de não poder haver possibilidade de deslocação por parte do noivo.

O padre Correia da Cunha, envergando a sua batina, à hora marcada ali chegou para a realização do sacramento, no domicílio. Acompanhava-o transportando a pasta contendo a sobrepeliz e a estola, assim como o livro de assentos de casamentos.

Por imperativo da lei, tratando-se de um acto publico, era obrigatório a abertura das portas, para todos os que quisessem assistir. Aquando da abertura das portas ocorre um sequestro relâmpago, protagonizado pelos familiares da noiva, raptando a e levando-a com eles aos prantos e gritos. Ainda hoje retenho na minha memória a imagem da sua tia alta, larga e farta de seios, aguardando o momento para retirar dali a sobrinha pela sua hercúlea força. Era uma cena imaginária. O casamento não se realizou e a jovem foi levada num automóvel com destino a Fátima. O noivo com toda a serenidade perante as circunstâncias assistidas, manifestava uma enorme segurança, alegria, felicidade e paz interior. Fazendo-me lembrar a expressão do grande escritor Napoleon Hill : ‘’Seja o que for que o demónio me traga, eu responderei com rectidão.’’ Também o padre Correia da Cunha não foi surpreendido, pois havia sido informado previamente para a eventualidade desta operação por parte dos familiares da noiva. Instalada numa unidade hoteleira no Santuário Mariano de Fátima a jovem durante mais de uma semana não comeu mais nada, nem nada mais bebeu…. Estava agressiva e nem no sono tinha tranquilidade. O seu corpo começava a apresentar debilidades. A situação de saúde manifestava sinais de perigo e descontrolo. A inocente jovem podia morrer, e quem assumiria a responsabilidade de não ter feito absolutamente nada pela sua vida? 

A dor e a angústia dos pais eram grandes, por verem a filha prisioneira naquela ervanária. A operação pensada para a salvarem do cativeiro não estava a correr bem. Alguém da família em um momento de lucidez, pediu silencio e afirmou: ‘Para alguém que já passou uns largos meses, por tanta coisa como ela, o melhor é respeitarmos a sua vontade’. No amanhecer do dia seguinte, seguindo este sábio conselho, regressou toda a família a Lisboa e entregaram a jovem ao seu noivo que a aguardava com toda a serenidade e coroa de felicidade. Ela nunca deixou de amar a sua família que visitava assiduamente, de gostar das suas colegas das OGFE, onde seguiu sempre trabalhando e dos conhecidos que continuava a cumprimentar respeitosamente. Mas não colocava nada acima da sua escolha de vida. Sempre acreditei na ilusão de sermos diferentes e quando não somos… Quando iniciei estudos sobre a obra do grande filosofo contemporâneo – Sri RAM – um dos pensadores que mais escreveu sobre Vida Interior, tomei consciência que a felicidade é Paz e Serenidade Humana. A pergunta é pertinente. Haverá vida interior em cada um de nós? Se houver também teremos diálogos interiores. Porque haverá em cada um de nós, a tendência para revolucionarmos o mundo exterior? Onde estará a nossa capacidade de responder aos nossos desequilíbrios emocionais…? Muitas vezes buscamos fora o que está dentro de nós! Nesta história haverá muitas coisas que nunca saberemos explicar, porque nunca a experimentamos. Seguindo o pensamento do filosofo: «O ser humano só tem uma qualidade que é a sua vida interior que deve estar em paz consigo próprio». Esta é a nossa marca humana e a imunidade da nossa consciência. Paz não é indolência. Vamos lá à história do ervanário. A vida da jovem, até ali, era o que tinham feito por ela. Ela não tinha Acção nem participação.

Naquele final de tarde, naquela cadeira, ela viu por si mesma, ouviu com os seus ouvidos e pensou com a sua cabeça… O que aquele homem viu era o seu padrão de mulher. Estava lucido e soube ler a sua vida interior, sabendo o que poderia acontecer. A sua essência e identidade ninguém lhe podia tirar. Ela seria a sua 'amante' e servidora. O comportamento da jovem foi humano: viu, gostou e quis, depois nas emoções deixou-se aprisionar. Ele não lhe roubou nada, apenas lhe servia rastros de paz e beleza e ela não desejava nada mais. Ela seria uma Deusa servindo a beleza. Era feliz em Liberdade, optando pelo amor de servir o belo, que lhe gerava segurança, simplicidade e profundeza de vida interior. Esta história ocorrida no Bairro de São Vicente de Fora, nos anos setenta, já vai bem longa, pelo que a terminarei afirmando: que quando temos uma palavra, uma ideia, um conceito e a percepção de uma experiência a nossa consciência nunca nos vai deixar perder das bases (valores, sabedoria e virtudes) e dificilmente podemos embarcar numa barca que nos pode levar pelos mares da eternidade. Mais tarde o casal realizou o seu sonho de casamento e pelas notícias que me chegavam foram muito felizes por muitos e longos anos. Ela veio ao mundo para deixar a sua marca de serviço e generosidade ao ser amado.