segunda-feira, 23 de maio de 2016

I CONFERÊNCIA DE CAPELÃES NAVAIS DA N.A.TO.

















MÃOS ATRAVÉS DO MAR...

A primeira Conferência de Capelães Navais dos países da N.A.T.O foi realizada na cidade de Haia (Holanda) de 13 a 16 de Agosto de 1956, com a presença de 11 nações (Bélgica, França, Itália, Alemanha Federal, Turquia, Grã-Bretanha, Canadá, Holanda, Estados Unidos, Noruega e Portugal).

Como nasceu a ideia? – Foi nos inícios do ano de 1956 que a ideia nasceu na mente do Capelão Chefe Protestante da Marinha Real Holandesa, Cap. H. Sillivis Smitt, numa discussão com seu colega Capelão Chefe Católico Mons. De Sain. A ideia era simples, dar início a uma conferência dos capelães navais da N.A.TO. Essa conferência visava modestos objectivos, mas ali se poderiam obter profundos conhecimentos e formas de dar resposta a importantes problemas como, por exemplo:

1.  Evidenciar o empenho dos países da N.A.T.O, na abordagem das complexas questões políticas, militares e económicas, surgidas no mundo actual. Mostrar o que as capelanias podem representar para a busca de uma paz justa e duradoira em obediência à vontade de Deus. Uma paz que fosse enraizada nos direitos intrínsecos de cada pessoa humana e no primado dos valores morais, espirituais e religiosos.

2.    Ajudar os capelães da N.A.T.O a enfrentarem os problemas comuns ocasionados pela agressiva exigência da vida no mar e pelas solicitações requeridas num mundo em contínuas transformações. Aperfeiçoamento dos métodos organizacionais das capelanias.

3.    Dar ideias e objectivos aos capelães da Marinha dos países da N.A.T.O, assim como terem a oportunidade de trocarem opiniões no interesse comum, para o presente e para o futuro.

Não demorou muito para que o Secretário da Marinha dos Estados Unidos e o Secretário da Marinha Real Holandesa aprovassem com espontâneo entusiasmo esse projecto.

Foi referido que a Conferência não era um Congresso de teólogos. Era uma reunião de homens com tarefas comuns que anseiam ouvir e aprender uns com os outros. A intenção destes capelães navais era, discutir, minimizando as diferenças religiosas. Pois todos tinham como denominador comum o de servir as suas convicções religiosas. Mas também ouvirem como nos diferentes países funcionam as capelanias navais. Trocarem experiências, métodos e meios para levarem por diante a gratificante mas complexa missão de formarem os marinheiros nas vertentes humana e espiritual.





ALM. EDWARD B.HARP JR.
Os capelães da Armada e outros representantes navais da N.A.TO., participantes nesta primeira conferência realizada na Holanda, a convite do ministro da Defesa desse país, expressaram através do Senhor Almirante Edward B. Harp Jr. (porta voz de todos os capelães) a profunda gratidão ao governo da Holanda e, particularmente, ao Corpo de Capelães da Marinha Real Holandesa pela generosa hospitalidade oferecida a todos os participantes pelo país anfitrião. Todos se sentiram gratos por essa iniciativa, pois era uma excelente oportunidade para estabelecerem novos contactos, novas amizades e trocarem experiencias sobre a missão comum. A forma de manifestarem essa gratidão foi expressa numa fervorosa oração de todos os presentes pelas intenções de Sua Majestade a Rainha Juliana e sua família, assim como o de todo povo holandês.

Como resultado desta sua primeira conferência, os Capelães Navais constataram a importância desta vasta partilha das capelanias navais dos países N.A.T.O. Eram unânimes as opiniões de que se deveria efectuar pelo menos uma destas conferência anualmente.



Os capelães aproveitaram também para agradecer aos seus governos nacionais pelo empenho e confiança que depositaram nesta sua iniciativa.
Os laços de cooperação que daí poderiam resultar assim como o reforço dos objectivos morais e espirituais que poderiam brotar nessa magna convenção, assim o justificam.

PADRES CORREIA DA CUNHA  E PRESTRELLO VASCONCELOS
Foi proposto que os secretários para as futuras conferências fossem eleitos pelos chefes dos capelães de cada país. Foi deliberado que o próximo anfitrião seria os Estados Unidos. Fizeram-se votos de que as conclusões espirituais da próxima conferência fossem também tão frutuosas e que graças a Deus Todo-Poderoso nos seja dado a oportunidade de nos voltarmos a reunir para discutir os vários problemas que nos preocupam e a orar para que nos conceda a Graça de continuarmos ao seu serviço para o bem-estar daqueles que precisam do nosso cuidado espiritual.


Transcrevo a alocução feita nessa primeira conferência em Haia pelo Capelão da Marinha de Guerra Pe. João Perestrello de Vasconcelos que acompanhou o Chefe Capelão Correia da Cunha a esta Conferencia de Haia.


Cidade de Haia Holanda


JOÃO PERESTRELLO VASCONCELOS
“Perde-se, na noite dos tempos o povoamento da Península Ibérica, extremo Ocidental da Europa.
Os movimentos políticos-sociais dos primeiros séculos da nossa era, que acompanharam a queda do Império Romano, vêem encontrar os Reinos da Península, solidamente estruturados por uma administração de moldes romanos e por uma Fé cristã que tem as suas fontes directas na própria pregação dos Apóstolos. É certo que o Apóstolo São Paulo passou pela Península em visita às cristandades fundadas pelos seus colaboradores. As hordas bárbaras que assolam a Europa ao chegarem à Península, fixam-se e deixam-se absorver pelos autóctones. O mar de gente que varre a Europa durante toda a baixa idade média vem quebrar-se, em ondas sucessivas nos reinos peninsulares até finais do Século V. É também no alvorecer do Século VI que vemos os últimos invasores a converterem-se ao cristianismo.   

Porém, a pregação do Maomet durante o segundo quartel do Século VIII criava novas forças nas vizinhanças da Europa e assim, no alvorecer do Século VIII (em 710) vemos nova invasão da península, desta vez pelo sul, a dos árabes.

Mais bem organizados, politica e administravamente, do que os bárbaros que tinham vindo do extremo Oriental da Europa, mais fortes do que eles, porque apoiados por vários povos irmãos na crença religiosa, rapidamente invadem o território peninsular, empurrando para as montanhas do Norte os povos das diferentes nações que vão invadindo.
Com a lentidão própria dos mais fracos, mas com a decisão específica dos que têm o seu direito em jogo, recomeçam estes punhados de homens a reconquista das suas terras aos fortes impérios almóades e almorávides.
Os antigos reinos vão retomando forma. Um dos primeiros a reconstruir-se é o reino Lusitano, agora chamado Portucalense, do título do primeiro chefe que se consagrou à sua Restauração.


Em 1147 realiza-se a reconquista de Lisboa aos Mouros por D. Afonso Henriques, filho do Conde de Portucal e primeiro Rei do reino renovado. Nesta reconquista, como aliás em muitas outras, que demarcaram as fronteiras da Nação Portuguesa, foi o Rei coadjuvado por diversas esquadras de saxões, germanos e flamengos que se dirigiam à Palestina. E nestas esquadras, de que já faziam parte navios portugueses, surge a primeira forma de Assistência religiosa às forças do mar. Dirigidas na parte militar pelos monges e cavaleiros, de que toda a história guerreira da idade média se encontra recheada, não deixavam os navios, guarnecidos por militares enquadrados por membros das Ordens Militares, de ter uma eficiente Assistência Religiosa ministrada, segundo os recursos da época, dentro do mais apertado regulamento estabelecido pelos próprios estatutos das Ordens Militares.


Com o Século XIV começa Portugal a sua epopeia dos descobrimentos, que deram ao mundo civilizado de então, novos mundos para povoar e colonizar e deram aos povos desses mundos novos mundos a protecção dum povo poderoso e nobre e a luz do Evangelho. Não vamos aqui esquadrinhar tantos e tantos casos que denegriram tão alto ideal proposto pelos que tinham na mão a orientação desta gigantesca actividade, casos provocados pela ganância de uns, pela ingerência de outras potências num trabalho para que não estavam preparadas, em resumo, pela humana fraqueza que se não chega a destruir, pelo menos ofusca a beleza de tantas e tantas obras.

Logo no início do esforço descobridor se verificou a inconveniência de monopolizar pela parte do Estado a actividade Ultramarina, ao mesmo tempo que não seria possível deixar a iniciativa dos indivíduos a obtenção de obra capaz. À Ordem Militar de Cristo, especialmente fundada para esse fim, se confiou a empresa de dilatar a Fé e o Império. E, como Ordem Militar Religiosa que era, logo garantiu a Assistência religiosa nos navios das Armadas do tempo, dada a insegurança da navegação do tempo era constituída por navios meio mercantes meio guerreiros.
A primeira metade do Século XVII foi a página negra na história de Portugal. Usurpados os cargos políticos e administrativos por súbditos Espanhóis, viu-se a nossa política naval completamente desorganizada para secundar os interesses de Espanha.


Desde então, embora voltasse o mando para mãos portuguesas, o poderio naval português decaiu vertiginosamente. Nunca mais se encontra regulamentação da assistência religiosa na Marinha, que fica condicionada aos regimentos de ocasião, distribuídos ao comando de cada esquadra, é que; além de tudo isto, nos encontramos numa época de grande agitação, ideológica na Europa, que impede o estabelecimento de normas jurídicas neste capítulo.


Só em 1855 começa a organizar-se, em moldes que diremos, modernos, a assistência religiosa aos Navios das Armadas Reais. Mas estas mesmas leis surgem numa época em que alastra em Portugal uma vaga anticlericalismo, que leva a ver em tudo manobras do clero para se apossar do poder temporal. E, embora reduzida a algumas dezenas de unidades, a Marinha Portuguesa não é satisfeita nas necessidades que o seu pessoal tem de ser convenientemente assistido por Capelães.
Até 1910, nunca o quadro de Capelães navais ultrapassou o número de 10, e nesta data, ao estalar a Revolução Republicana considera-se a actividade dos Capelães como inútil e o seu quadro é extinto. Só em 1940, depois de assinada a Concordata com a Santa Sé, é posto perante os olhos dos governantes a necessidade que há-de dar satisfação às exigências espirituais do pessoal militar, particularmente ao da Marinha, que pelas suas condições de vida não podem recorrer aos bons ofícios do clero residencial.


Desde essa data até ao presente tem-se conseguido pouco a pouco que o número de Capelães vá aumentando, estando actualmente previsto o de cinco, além de 2 que prestam serviço a título eventual em locais distanciados das bases, mas onde o número do pessoal militar não é suficiente para impor a criação de um lugar de Capelão efectivo. Além destes capelães, reconhecidos pelo Estado, temos de mencionar o labor apostólico, inteiramente desinteressado, de sacerdotes que nada tem a ver com a Marinha mas que, encontrando-se perto de estabelecimentos navais praticamente abandonados da Assistência Religiosa, procuram pelos meios mais oportunos, amparar e auxiliar os marinheiros.


A situação dos Capelães actualmente prestando serviço na Armada ainda não é definitiva, porquanto não há autoridade religiosa competente para os apresentar ou para regulamentar a sua actividade. No nosso caso, em que todos os Capelães são católicos, a autoridade deverá ser a de um Vigário Castrense, nomeado pela Santa Sé. Por isso, só no respeitante a fardamento e vencimentos está definida a situação dos Capelães da Armada, ficando entregue à boa vontade e zelo de cada Capelão o bom desempenho da sua missão. Até ao presente, devemos dar graças a Deus que tudo tem corrido pelo melhor, tendo-se conseguido num meio profundamente anticlerical, como é o da Marinha, fazer aceitar e desejar a presença do Capelão. Conseguiu-se a construção de uma Capela na Base Naval de Lisboa e a adaptação de salas e capelas em vários centros de instrução. Os capelães só acidentalmente tomam parte em comissões fora dos portos de armamento, mas a sua presença nessas comissões faz-se cada vez desejar mais. Graças aos esforços envergados desde 1940, conseguiu-se organizar uma organização de formação de praças e sargentos e está em vias de estudo a de uma para oficiais. Os Capelães têm sido o elemento indispensável na organização das obras de previdência social ou de recreio e dia a dia as autoridades da Marinha reconhecem a incapacidade dos oficiais para, de uma forma estável, se dedicarem a tais actividades.


Embora erradamente, tem as autoridades da Marinha deposto sobre os ombros dos Capelães toda a responsabilidade da formação do pessoal que entra de novo nas fileiras da Armada. Procura-se no momento presente, ver a necessidade de todos os superiores se dedicarem a esta missão com todo o zelo, lembrando-se que o Homem é um composto de corpo e alma que é perigoso dissociar, e que, portanto, em todos os aspectos de instrução ou formação tem de ser encarado também como ser livre, regido por uma lei moral.


Uma associação de pessoas de boa vontade, nem sempre ligadas directamente à Marinha, asseguram um eficaz auxilio aos Padres Capelães na sua obra de vitalização espiritual do pessoal que presta serviço nas fileiras da Armada. E para que o seu esforço ainda seja mais bem aproveitado prevê-se algumas alterações nos estatutos desta associação.
A vida espiritual na Marinha, procura-se que seja verdadeira, não se limitando por isso a que os Capelães a procurarem ou a encaminhar o pessoal para as cerimónias religiosas ou actos de cariz espiritual, mas procurem que todos ponham em prática o preceito Evangélico da caridade através de obras e organizações, (conf. SVP) que dêem possibilidade de orientar, canalizar e aproveitarem esses esforços cristãos dos marinheiros.
O que se nota de maior falta, de momento, além do número de Capelães é o de auxiliarem em empenhamento ou fundos da Marinha.

Padre João Prestrello de Vasconcelos - Capelão da Marinha de Guerra 







Depois de terminada a I Conferencia dos Capelães Navais dos Países da N.A.TO, haveria que dar início a um esgotante trabalho de preparação da próxima Conferência a realizar nos Estados Unidos da América. O secretariado eleito pelos chefes capelães ficara assim constituído: Almirante Burke, Almirante Wright, Almirante Holloway, Almirante Harp.
Seriam formadas delegações, que visitariam os vários países com o objectivo de convidarem os respectivos Capelães, para essa II Conferência a realizar em Outubro de 1957.


É tema para o próximo texto a visita desses altos dignitários da Marinha da N.A.T.O. a Lisboa, a serem recebidos pelo Ministro da Marinha e pelo Cardeal Patriarca, no mês de Junho de 1957.





















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sábado, 7 de maio de 2016

PRIOR – CÓN. MARTINS PONTES












CÓNEGO Joaquim Martins Pontes

“ O ULTIMO SERMÃO DO SR. PRIOR”



No último texto recordei o mestre de vida do Padre Correia da Cunha: Mons. Pereira dos Reis.

Mons. Pereira dos Reis foi um exímio educador dos seminaristas, do Seminário Maior de Cristo Rei, nos Olivais. Todos os clérigos que o tiveram como reitor são unânimes em reconhecer e afirmar quanto ele os marcou. O Prof. Marcelo Caetano, seu paroquiano, após a sua morte, escreveu: Extraordinário homem de ciência e virtude, gigante que a morte agora fez tombar, foi uma das figuras maiores do clero português dos últimos tempos.

Hoje, evocamos afectuosamente outra figura do clero, o Prior da Paróquia de Arroios – Cón. Joaquim Martins Pontes. O Zézito foi seu discípulo, para além, de ter sido ele a baptizá-lo (12 de Dez. 1917) na  Paróquia de Arroios. Foi o Senhor Prior que fortaleceu o ânimo para a sua entrada no seminário. À estima veio juntar-se a profunda gratidão pela orientação que recebera do Cónego Pontes, desde a sua infância.

Pelo convívio de longos anos fundiu-se um forte sentimento de amizade inalterável. Como prior de São Vicente de Fora , o Padre Correia da Cunha sempre  recordava o seu pároco Pontes pela sua imensa inteligência. No texto que hoje publico, da sua autoria, verifico que sempre o acompanhou… até aos derradeiros dias da sua vida.

O texto, datado de 25 de Outubro de 1944,  sobre a agonia do Con. Martins Pontes, faz me trazer à memoria momentos semelhantes que ocorreram na Paróquia de São Vicente de Fora, trinta e três anos depois, onde estive envolvido. Creio que  poderia ter escrito peça literária semelhante, narrando factos ocorridos naquela sexta-feira, dia 1 de Abril de 1977 em que o Padre Correia da Cunha na reunião do Conselho Paroquial de uma forma efusiva e com uma extrema delicadeza  agradeceu, a um por um, o  empenho na vida da comunidade e pedindo-nos perdão das suas faltas. Que estaria a sentir aquele bondoso coração?

Retirou-se, bastante abatido e estafado cerca das 23,30 Horas, para os seus aposentos, onde, em total solidão, partiu para o outro lado. A sua ausência para a celebração da missa das 9,30 horas de sábado foi o alarme para algo que só o silêncio do seu dormitório testemunhou...a sua partida para a eternidade.

O Con. Martins Pontes apresentou-se no outro lado da vida com o seu penitente burel de terceiro franciscano e acompanhado com a luz da vela, símbolo da Luz de Cristo que tão bem soube espalhar ao longo da vida pelas várias comunidades cristãs.


       O Padre Correia da Cunha, trinta e três anos depois, apresentou-se no outro lado da vida no seu estado natural do paraíso, símbolo da inocência, simplicidade, desprendimento dos bens materiais, renúncia, humildade e perdão… valores que transmitiu ao longo da sua vida pelas comunidades onde passou.





LIÇÃO DE VIDA NA MORTE (texto autoria Padre Correia da Cunha)

Faz hoje um mês. Naquela tarde de domingo, chuvosa e triste, o Reverendo Pe. Augusto de Araújo, que na véspera o confessara, fora saber dele.

- Então, Senhor Cónego Pontes, bem-disposto, não é verdade? – Perguntou o bom frade, num tom de voz que fez ecoar aquelas simples palavras no mais recôndito da alma do enfermo. E o Senhor Prior – olhar distante, aquele pensativo olhar perscrutador do além das coisas, esboçando um gesto com a mão tremente, aquele gesto tão seu com que procurava apanhar a palavra precisa para expressar a ideia – O Senhor Prior, com a consciência plena da pergunta, responde indirectamente: - Sabe Senhor Padre Augusto eu escrevi, em tempos que morrer é voltarmos-mos para o outro lado, o lado eterno da vida. Chegou agora a minha vez…

Não fora bem assim que saiu escrito. É ver na «Lumen» no segundo artigo sobre «o valor divino e humano de um pronome: - Nós» e verificar-se-à. Escreveu ele: «morrer … é voltar-se para o outro lado – o lado da eternidade». Mas a sua fulgurante inteligência e o seu grande poder de expressão souberam dar aquela frase uma «nuance» mais bela na forma e mais rica do conteúdo cristão e humano.

A poucas horas de dar essa angustiosa volta, num passo decidido e confiadamente cristão, aquela alma de padre e de sábio (no sentido filosófico da palavra) ainda falava assim. E assim falou até ao fim…

O Senhor Cónego Pontes é um autêntico Diógenes. Lá vive arrecadado no seu buraco, mas tenho para mim que é um dos padres mais cultos do país: - ouvi eu algumas vezes da boca do Eminentíssimo Cardeal Patriarca.

Efectivamente, a par do sábio de rara e profunda cultura literária, filosófica e teológica sempre actualizada e eloquente havia nele uma simplicidade virtuosamente infantil. Tão depressa se embrenhava nos domínios da especulação como descia franciscanamente a travar com a natureza diálogos fraternos.

Alma delicada de artista, a sua conversa era sempre interessante e sugestiva. Parece-me que estou a vê-lo: - nas Caldas da Rainha no jardim do Hotel Lisbonense, ao por do sol, cansadamente recostado na cadeira de palha. Eu acabava de ler-lhe algumas das, para mim, mais impressionantes poesias de Rainer Maria Rilke. E ele criticou: - Que delicadeza que sensibilidade… essas imagens novas palpitantes, são realmente de um grande poeta. Vale a pena aprender alemão, José, vale a pena.

E continuou: - Poesia não a faz quem quer, mas quem nasceu poeta, com o dom de Deus… Poeta é quem entende o que diz o nosso irmão Senhor Sol a nossa irmã Madre Terra. Poesia é sentir e desvendar o mistério… e tudo é mistério…

Que dirá o vento aqueles aloendros em flor? – Umas vezes murmúrios de afago, outras violências de paixão…

E calava-se, para continuar a conversa a sós consigo próprio. Eu sentia que ele conversava mais com as coisas que eram objecto desses diálogos do que comigo.

Uma tarde falamos de anseios, de ideal, desta tortura humana de querer voar e sentir as asas presas. E o Senhor Prior aponta-me umas palmeiras e diz: - José, o homem é como a árvore, embora firme no chão, deve crescer para o alto.
- Mas as palmas e as tâmaras debruçam-se para baixo, observei.
São as sombras que acolhem os frutos que saciam. Debruçar-se não quer dizer cair. A síntese da vida é o Amor numa ascensão para Deus e num debruçar-se para os homens.

Já se pusera o Sol, mas ainda não era noite. Era um entardecer suave em tons violáceos de harmonias íntimas; hora em que se ouvem a voz das coisas e a voz de Deus em colóquios misteriosos, adentro do claustro da nossa consciência. Passa uma nuvem. E uma tristeza que não é triste paira sobre nós. Há um indefinível misto de melancolia e prazer íntimos.


- Aqui há dez anos, tive o meu São Martinho… Agora chegou o Outono. – É o cair da folha…






- Então Senhor Prior, já de volta? – É verdade. Cá estou à espera!...

Só quem lhe viu o olhar e ouviu o tom da sua voz, percebeu a intenção daquelas palavras.
Ele bem sabia que a irmã morte estava a bater-lhe à porta.

Quando vindo das Caldas, verificou que não tinha forças para subir as escadas da dependência da igreja, que ele transformara em aposentos, compreendeu perfeitamente que já não as desceria por seu pé. E, no entanto, durante aqueles últimos dias, não deixou de se interessar por quanto dizia respeito à vida da sua paróquia. Numa delicadeza que era caridade, só uma coisa lhe era cuidado e preocupação: o querer ocultar aos amigos e família o reconhecimento próprio do seu estado. Não queria que eles sofressem com vê-lo sofrer. Nem uma alusão, nem uma queixa sequer. Só na sexta-feira, vinte e dois, ao ouvir o toque dos sinos, aquando da saída do Sagrado Lausperene, é que não se conteve e num movimento dolorosamente impressionante, escondeu a cabeça debaixo da roupa. Quando se destapou, tinha os olhos marejados de lágrimas. Que teria dito aquele grande coração a voz dos sinos da sua igreja?

No sábado, ante véspera da decisiva volta, pediu ao Senhor Bispo, que o fora visitar, o favor de mandar vir o Reverendo Padre Augusto de Araújo.

Um quarto de hora depois confessava-se, como quem se limpa da poeira deste vale de lágrimas para entrar na casa do Senhor.

Saído o Padre, chamou os seus mais íntimos amigos e cooperadores e, a um por um, pediu-lhes perdão de qualquer falta…
Todos choravam. Só ele estava sereno, resignado e confiante.




No domingo, de manhã, começaram os vómitos de sangue, mas ainda pôde receber o Sagrado Viático e a Sagrada Unção.

Já lhe custava muito a falar, mas foi ainda na tarde desse dia que disse estas memoráveis palavras. Pelas quatro da madrugada começou a dolorosa agonia. Com inteira consciência de que ia dar a volta para o outro lado – o lado eterno da vida, manda recitar o impressionante ofício. Segura firmemente a vela acesa – Luz e chama a iluminar-lhe os passos para ir ao encontro do Senhor. Olha o relógio a ver as horas. Com voz bem nítida, embora a custo, repete as invocações das Ladainhas e responde: AMEM no final das orações.

Ao chegar ao fim da leitura da PAIXÃO, julgando-se ser cansaço o que era comoção profunda a embargar-nos a voz, mandou-nos sair a repousar um pouco. Por volta das sete e meia da manhã chama-nos de novo. Sentia-se pior, queria por isso que continuássemos. Como, porém aquela última parte do ofício é mais pequena, terminada ela, volta-se e diz: - Repete as orações do princípio e deixa as invocações para o momento de oferecer a vida a Deus.

Ainda estou a vê-lo: Já nos estertores da agonia pega de novo no relógio com a mão esquerda, porque a direita segurava a vela que não queria largar, e repete roucamente, por entre golfadas de sangue, as jaculatórias do Ritual. – In manus tuas, Domine comendo spiritum meum!...

Disse ainda uma palavra que eu (confesso) não percebi já mas que a sobrinha afirma ter sido Magnificat – esse cântico da virgem de que ele tanto gostava. E repetiu ainda algumas vezes: In manus tuas, Domine…

E inclinou a cabeça e ficou-se… voltado para o lado eterno da vida.

O Senhor Prior…
Ajudei-o a segurar a vela da agonia. Vesti-lhe o penitente burel de terceiro franciscano. Também há vinte e sete anos, ele me vestiu a túnica branca e segurou na minha mão direita a vela acesa.

Pela vida fora toda a túnica branca perde aquela candura inicial. A dele ganhou a cor das macerações e cilícios. Toda a vela é soprada, correndo até o risco de apagar-se. A dele ganhou sempre mais brilho e fulgor.




Simbolismo e realidade do Sacramento que nos introduziu na vida eterna, repetiu-se, há um mês, quando o Senhor Prior deu para ela a volta definitiva.

Há vinte e sete anos que as nossas mãos se tocaram, pela vez primeira para ele me guiar na vida com a luz da fé. Há um mês que se tocaram, pela última, para em nome da Igreja, lhe iluminar eu os passos à entrada do túnel de acesso à estação final da vida.

Guardo religiosamente aquela vela da agonia, tão rica pelo simbolismo litúrgico que encerra, e até pelos sinais bem marcados dos dedos do meu Senhor Prior.
Meu Deus! Quando a irmã morte bater à minha porta, que eu tenha vestida a túnica penitencial e segure na mão a vela acesa.

E que seja aquela que eu tenho, ali guardada. Que eu morra assim, tal qual…

Texto da autoria de Padre José Correia da Cunha – 25 de Outubro 1944

















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