quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

AUTO DO NATAL - PADRE CORREIA DA CUNHA

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Padre Correia da Cunha levou ao palco diversas vezes, na Paróquia de São Vicente de Fora, o seu admirável Auto do Natal.

Passados 48 anos da sua primeira representação é torturante pensar que esta extraordinária obra venha a desmoronar-se e o papel amarelecido pelo tempo a cair no esquecimento da indiferencia… como refere Rogério Simões há muitos dos personagens deste Auto de Natal ainda vivos, e em todos eles ainda fervilha um forte sentimento de colocarem em boca de cena esta preciosidade que nos foi doada por Padre Correia da Cunha.

Precisamos de pessoas de boa vontade que por este país fora queiram carregar essa excepcional tarefa. Na celebração do jubileu da vida deste auto (2011), muito nos congratularíamos se houvessem pessoas que nos pudessem oferecer este transbordante e sagrado momento e que contribuíssem assim para a felicidade da nossa existência.

Creio que esse momento pode chegar! Espero pelas boas novas!





Um excelente ano de 2010! São os votos dos AMIGOS DE PADRE CORREIA DA CUNHA para todos visitantes!


‘’A primeira representação deste AUTO DE NATAL, em 24 de Dezembro 1961*, só foi possível graças ao entusiasmo do Povo da Freguesia de São Vicente de Fora e à valiosíssima colaboração de Catarina Avelar, na voz de Maria, de Álvaro Benamor, na de São José e de Luís Filipe que fez o papel do Narrador.

A Pedro Lemos se ficaram a dever as suas preciosas indicações de encenação e os ensaios dos restantes figurantes – gente do povo – e à Câmara Municipal de
Lisboa o alto patrocínio com que secundou a iniciativa.

Bem Hajam!


Padre Correia da Cunha’’

* nas escadarias da Igreja de São Vicente de Fora-Lisboa

I - ACTO


NARRADOR (Dirigindo-se a toda a Assembleia):

Senhoras e Senhores,
Operários ou doutores,
Velhinhos ou crianças,
Que andais nestas andanças
A que chamamos VIDA,
- Parai aí um pouco em vossa lida
E vinde meditar neste mistério
Tão repetido pelos séculos fora!...
(Seja dito sem ofensa ou vitupério
Da pobre Humanidade pecadora.)

A acção que vai ser representada
Pode chamar-se, à bela moda antiga,
O AUTO DA ESTALAGEM OU POUSADA,
Ou, se quiserem, boa gente amiga,

Poderemos chamar-lhe assim também
(Ao jeito da moderna poesia):
ALGÚÉM LÁ FORA BATE À MINHA PORTA!...

… Qualquer designação lhe fica bem.
É só questão de gosto ou fantasia.
Mas, francamente, o nome pouco importa.
Tudo pode chamar-se
Este Auto de ONTEM, de HOJE e de AMANHÃ…
? Ou não será verdade
Que a nossa pobre Humanidade
(E até muita alma que se diz cristã)
O que sabe fazer é só fechar-se,
Mesmo quando JESUS lhe bate à porta?...
Púnhamos, pois, de parte o nome a dar
Ao Auto que se vai representar,
Que o nome, francamente, pouco importa.


Mas, atenção, ó Bons Amigos meus!
Ouçamos em silêncio e muito a sério,
Pois vai aqui tratar-se do mistério
De cada um de nós com o próprio Deus!...

Aí, nesse primeiro patamar
Desta tão bela e nobre escadaria,
Muita gente andará em gritaria,
Apenas a vender e a comprar,
Trocando os bens e … honra por dinheiro…
(Não é assim que faz o mundo inteiro?)
Oh! Que tristeza é transformar a vida
Numa FEIRA DA LADRA… e nada mais!

Nesse mesmo local,
Cantigas, algazarras e berreiros
Se ouvirão depois num ARRAIAL
De jogos vis e gozos traiçoeiros,
De alegria bruta, falsa e oca!

Oh! Que tristeza é tanta gente louca,
Pensando só em si, no seu prazer,
Esquecendo o luto e a dor que vão lá fora!..
Triste alegria a que não sabe ter
Um coração aberto p’ra quem chora!...


Mais adiante, além,
Aquela casa de aparência calma
É a nossa POUSADA DE BELÉM,
Ou, se quiserem, a figuração
Da mísera POUSADA DA NOSSA ALMA,
Que fecha a porta à própria salvação!


Aqui, ali, de lado, à frente, atrás,
São ruas e caminhos,
Estradas boas e más,
Da sempre actual ALDEIA DE BELÉM.

Cansada de uma longa caminhada,
Anda aflito um PAR DE POBREZINHOS,
Batendo a toda a porta, aqui e além,
À procura de abrigo ou de pousada,
…Que a Senhora está prestes a ser Mãe…

Será preciso pôr-se mais na carta,
Para saberem já de quem se trata?
- È JOSÉ E MARIA, pois de certo!

Não os veremos, não. Mas andam perto,
Tão pertinho de nós
Que todos ouviremos sua voz.

Um coro de homens está além, de lado,
Representando a pobre Humanidade

Que geme sob o peso do pecado
E sofre a fome da felicidade…

Ei-los sempre a pedir a salvação,
Que, afinal, não aceitam, quando vem!...

È sempre o mesmo drama de Belém,
O drama da humana condição…


Coro dos Homens:

SENHOR DEUS, MISERICÓRDIA!
(3 vezes)

Coro dos Anjos:

(Solo): GLÓRIA IN EXCELSIS DEO!
(Todos): GLÓRIA IN EXCELSIS DEO!

(Dueto): Anjinhos Celestiais,
Cantemos hinos de louvor
Ao grande infinito amor
Do SENHOR pelos mortais!


(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): Sabeis que se vai passar,
O que vai acontecer?
- Por um milagre sem par,
Deus na Terra vai nascer!

(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): Oh! Quão grande é o SENHOR!
Quão grande o poder divino!
Pois num milagre d’amor
Deus irá nascer Menino!

(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): E na pobre humanidade,
Surgirá divina esp’rança,
Quando (oh! Santa caridade!)
O próprio Deus for criança!

(Todos): GLORIA… etc.

(Repete-se o último coro, diminuindo até desaparecer. Entretanto, outros Anjos recitam:)

1º Anjo:

Corramos, Anjinhos!
Depressa, Amiguinhos!
Vamos todos ver
A grande alegria
Que em festa este dia
A Terra vai ter!

2º Anjo:

Deus Homem vai ser…
E que vão fazer
Na Terra os Mortais?...
Para o BOM JESUS~
Palácios de luz,
Arcos triunfais!

NARRADOR (Dialogando com o 2º Anjo):

Deus Homem vai ser.
E que vão fazer
Na Terra os Mortais?...
Ao SENHOR DA VIDA
Vão dar-lhes a guarida
Que é dos animais!...

2º Anjo (mesma cena):

Eles vão com certeza
Encher de beleza
Todos os caminhos!...
Irão’spalhar rosas
E flor’s mimosas
Para os seus pezinhos!...

NARRADOR (mesma cena):

El’s vão com certeza
Encher de tristeza
Todos os caminhos…
E em vez de mimosas
Pétalas de rosas,
Irão dar-Lhe espinhos!...


2º Anjo (mesma cena):

Que vão lá fazer
Assim que nascer
O VERBO DIVINO?...
- Vão dar-Lhe um tesouro
E um bercinho de ouro
Para o DEUS MENINO!...


NARRADOR (mesma cena):

Que vão lá fazer,
Assim que nascer
O VERBO DIVINO?...
Irão escorraça-lo,
Irão maltratá-lo
Desde pequenino!

2º Anjo:

O que vão fazer?
Pois agradecer,
Cantando de amor…
E assim nosso Deus
Verá que nos céus
Não se está melhor!

NARRADOR:

O que vão fazer,
Quando Deus nascer,
Será um horror!...
E assim o ETERNO
Terá um inferno
De amargura e dor!...

1º e 2º Anjos

JESUS vai nascer!
Vamos todos ver
O que lá se faz…
De certo na Terra
Acaba-se a guerra
E haverá só paz!

……
……

NARRADOR (Dirigindo-se à Assistência):

Enquanto lá no Céu reina a alegria,
Há festa e regozijo
Pelo mistério que se vai passar,
Haverá cá na Terra algum juízo
Capaz de despertar
Amor ou simpatia
Ou mera compaixão?...
Haverá neste mundo alguém que queira
Ofertar uma cama ou uma esteira
Ao CASAL PEREGRINO,
Para que o SENHOR DEUS,
Que os Anjos adoram lá nos Céus,
Possa entre nós nascer feito MENINO?...

Vamos a ver, Irmãos, vamos a ver
Se os homens sempre arranjam um cantinho,
Inda que muito humilde e pobrezinho,
Onde o SENHOR DOS CÉUS possa nascer!

(Dirigindo-se aos Feirantes:)

Eh! Lá! Vocês, que são negociantes,
Compradores e feirantes,
Instalem-se p´raí na vossa lida
E façam normalmente a vossa vida!

(Para a Assistência:)

Serão estes capazes de escutar
Os apelos de DEUS que vem rogar
Um cantinho qualquer onde nascer,
Feito mortal como qualquer de nós?
Serão eles capazes de dizer
Que sim à Sua voz?...

(Filosofando:)

Ah! O dinheiro tem um tal encanto,
Desperta tal cobiça,
Prende e fascina tanto,
De tal modo enfeitiça,
…Que os pobres homens a que el’ seduz
Não são capazes de escutar JESUS!

Ah! Os negócios fazem tais ruídos
E a ganância faz tanto escarcéu,
… Que eu não sei bem se eles terão ouvidos
Capazes de entender a voz do Céu!...

II - ACTO


A FEIRA
Um Feirante:

Eh! Freguesia! Eh Freguesia! Aqui!
Aqui é tudo muito mais baroto!
Há fatos de Kaki
Dos grandes e pedquenos;
E todos custam menos
Do que em qualquer lugar da nossa praça!


Eh! Lá! Freguês! Você não quer um fato?
Aproveite, Freguês, isto é de graça!
Ora, venha cá ver como isto é bom!
É chic! È de bom tom!
De corte americano!
E é do melhor pano!...

Também tenho de alpaca e de fazenda,
De tirilene e de óptimo algodão!...

Outro Feirante:

Olá, Menina, quer lençóis de renda?
Não perca a ocasião,
Não perca esta pechincha!...


Um garoto (Pedindo):

Minha Senhora, dá-me um tostãozinho?

Um feirante:

- Vai-te embora, rapaz, deixa a pedincha!

Outro Feirante:

Pst! Pst! Menina, venha cá!
Repare nesta saia
E veja esta blusa!
Belo conjunto para campo ou praia!
É o que agora se usa!...

Outro Feirante:

Quem quer comprar agulhas e dedais,
Pentes e alfinetes e outras coisas mais?
Agulhas de crochet,
Agulhas de tricot,
Filtros para café!...


Garoto (cantarolando)

Ai ló! Ai ló!
Ai ló! Ai ló! Ai ló!
Mamã compra um balão
Para a marcha à flambó!

Outro Feirante:

Eh! Meus Senhores! Venham cá ver isto!
Material assim nunca foi visto!
São brincos de senhora,
Que toda a moça adora!
Alfinetes, anéis e arrecadas,
E lindos pedantifs e correntes,
Berliques e berloques!


Um garoto (tenta mexer).

O Feirante:

- Ó mariola, vê, mas não lhe toques!

Outro feirante:

Abanicos pintados! Lindos leques!


(Pai e filha passam. Ela cobiça com o olhar. Ele diz:)

- Ó Filha, são todos pechisbeques!

Vendedor ambulante:

Escovas prós dentes!

Outro Vendedor:

Pós p’ra limpar metais!

Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões! Freguês, 3 pentes!

Outro Vendedor:

Esticadores pró colarinho!

Outro Vendedor:

Panelas, tachos, vidros e cristais!

Charlatão:

Senhoras e Senhores!
Não venho aqui para enganar ninguém,
Nem sequer p’ra vender mercadoria…
Venho p´ra vos livrar das vossas dores
E dar-vos alegria!
Venho trazer-vos um imenso bem!
Eis, Senhores, a maravilha ideal,
A descoberta mais sensacional,
Eis a piramidal,
Eis a fenomenal,
A grande panaceia,

Usada já no mundo inteiro e agora
Também em Portugal, em boa hora!
Boa p’ra tudo, até p’ra diarreia…

Na Rússia e na França,
Na Austrália e na Argentina
Na Pérsia, Alcabideche e até na China,
Em toda a parte onde o progresso avança
Veio revolucionar toda a ciência!
E agora é a grande esp’rança
Do povo português!
Ó Freguês! Ó Freguês!
Vossa Excelência,
Tome estes poses se quer ter saúde!
São bons, fenomenais e bem baratos
E cheios de virtude

Prós calos e prós ratos!
São infalíveis estes poses finos
Para as dores de barriga e de intestinos!


Quase nem se acredita…
E o preço? O preço? Oh! Em qualquer botica
Custava um dinheirão!
E aqui?... Custa cem escudos? – Não !
Cincoenta? … - Não! Quarenta? – Também não!
Vejam, Senhores, apenas dez mil réis!

Outro Feirante:

Tintas, vernizes, brochas e pincéis!
Aguarelas e quadros bons a óleo!


Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões!

Outro Vendedor:

Amendoins, tremoços e pinhões!

Todos os Feirantes:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Um Feirante:

Amigos, dinheirinho já cá canta:
Notas, cheques e letras!

Todos:

O dinheirinho é que nos encanta
E tudo o mais… são tretas!

Um outro (cantarolando)

Haja dinheiro!
Olé! Olé!
Esse matreiro
É a nossa Fé!

Outro:

Haja dinheiro
Com abastança
Esse matreiro
É a nossa Esperança!

Outro:

Haja dinheiro,
El dá valor!
Esse matreiro
É o nosso Amor!


Outro:

El’ nos dá tudo,
Amigos meus!
O bom do escudo
É o nosso Deus!

Outro:

Honra, Virtude
Que significa?
… Tudo se ilude
Se a gente é rica!...

Todos:

AVIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Oh! Gente boa! Eh! Lá! Gente de bem!...
Não arranjais aí algum lugar,
Onde minha mulher possa ficar?...
Está prestes a ser Mãe!...

Todos:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Há tanto vento e frio aqui na estrada…
…Mas com franqueza, não se arranja nada?...
Nem sequer um cantinho para acolher?

O DEUS MENINO QUE NOS VAI NASCER?

? Não há lugar para o Salvador do Mundo?...

Um feirante:

Quem chora aí lamúrias e tristezas?

Outro:

Quem é? O que é que ele diz?

Outro ( que fora espreitar):

Sei lá!... É um infeliz!
Um maltês vagabundo!...
Anda pedindo esmola, com certeza!


Voz de S. José:

Oh! Boa gente amiga!...

Um feirante:

Muda lá de cantiga!...

Voz de S. José:

OH! Boa gente!...

Outro:

Diz que tem frio e fome!

Outro:

Que temos nós com isso!?
Mas que é que nos importa?
Diz-lhe que vá bater a outra porta!

Outro:

Ou então que aguente;
Que aguente, que é serviço!
Daqui não levam nada,
Maltrapilhos da estrada!...
O quê!? Irmos gastar
Dinheiro que estivemos a ganhar
Com gente dessa? – Não!

Voz de Maria:

Oh! Gente boa! Tenham compaixão!...
Vai nascer o MENINO…
Deixem-me aí ficar, por caridade…

Um feirante:

Rua! Gente sem tino,
Que isto aqui não é Maternidade!...

(Todos riem da piada blasfema. Gargalhadas. Vão saindo de cena. O órgão
Entretanto começa a introduzir o Coro dos Homens, fazendo variações sobre o tema Rorate).

Coro dos Homens:

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

1ª Quadra:

Perdida está a humanidade,
Tal qual o náufrago no mar.
Senhor, lançai-nos, por bondade,
A vossa Mão p’ra nos salvar!

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

2ª Quadra:

O mundo vive em treva espessa,
Sem uma réstia de luz.
Cumpri, Senhor, vossa promessa:
Vinde até nós: - dai-nos JESUS!

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

3ª Quadra:

Na Terra, só miséria habita;
Bem triste é nossa condição.
Ouvi, Senhor, a nossa alma aflita,
Dai-nos a Paz, a Salvação!


Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

(Enquanto o Coro se vai extinguindo ao longe, arma-se o ARRAIAL: mesa de jogo, mesa de vinho e bailarico com a respectiva música.)

III - ACTO


ARRAIAL
Um Jogador:

Eh! Lá! O trunfo é espadas!

Outro:

Eu corto com a manilha!

Outro:

Cartas mal baralhadas,
Olhem lá que favor, que maravilha!...

4º Jogador

Vamos a ver quem ganhou!

1º Jogador

Ou quem perdeu!

2º Jogador (cantando):

Sete e três, dez mais vinte fazem trinta!...

3º Jogador

Eu logo disse: Cá co Xico ninguém brinca!

1º Jogador:

Quem não perdeu fui eu!
Isto foi um fartote!
Vocês os dois levaram um capote
De alto lá com charuto!

2º Jogador

Que lhe sirva ganhar à tripa forra!

1º Jogador

Guarde o dinheiro, homem, não seja bruto!

4º Jogador

Você daqui não sai. Quero a desforra!

(Entretanto, começa a tocar-se e a bailar-se.)

Animador:

Amigos, é gozar, que a vida é bela!
Não demos cabo dela!
Toca! Toca a brincar, rir e folgar!
Não percam tempo, não! Toca a bailar!

(Há bailarico. Anima-se a dança, durante algum tempo. Um dos assistentes ao baile, pessoa pacata, dá umas voltas. Depois diz:)

Zé Pacato:

Ih! Como o vento guincha!
E chove a potes, e faz muito frio! Puxa!
Nada!...Que eu só espreitei por aquela frincha,
Mas aquilo é de estucha!...

Animador:

Qu’importa a tempestade;
Que importa a ventania,
Se aqui a mocidade
Está quente de alegria?!...

È bailar e dançar, rapaziada,
E não pensemos no que vai lá fora!
Folgai! Bailai! Gozai a toda a hora,
…Que tudo o mais… é nada!


(Continua um pouco mais a animação do bailarico. Depois, pouco a pouco, vai-se ouvindo o órgão com o mesmo tema Rorate. Novamente o Coro dos Homens canta uma das estrofes e uma vez o Refrão.)

Um do Arraial:

Que raio de canto é este tão tristonho?

Outro:

E mesmo melancólico, enfadonho…

Animador:

Eh! Pá! Não faças caso. Orelhas moucas
É o que merecem tais palavras loucas!

Outro:

…Abram-se os Céus e chova!... Chova o quê?!...
- Vinho, gozo e prazer, pais já se vê!

Animador:

Folgar, bailar, gozar, rapaziada!
E não pensemos no que vai lá fora.
Gozar, gozar, gozar, a toda a hora,
Que tudo o mais…é nada!

Zé Pacato:

Eh! Camaradas, parem lá com isso!

Animador:

Então que há?

Animador:

Então que há?

Zé Pacato:

Não sei. Mas há enguiço! Sinto gente lá fora. Quem será?

Animador:

Não faças caso, Pá!

Voz de S. José:

Ó gente boa! Dêem, por favor…

Animador:

Olha! Vêm pedir! – Ponham-se a andar!
Fora daqui! Não venham perturbar
Este arraial em festa de alegria!

Voz de S. José:

Amigos meus, reparem que Maria,
A minha Santa Esposa…

Todos:

Rua! Andor!

Voz de MARIA:

Ó almas boas, tenham dó, piedade
De uma mulher que em breve vai ser Mãe!
E eis quase chegada a sua hora!

Todos:

Embora! Embora! Embora!

Voz de MARIA:

Cá fora sopra rija tempestade!
É grande o vendaval e o frio também…

Animador:

Olhem que fita!... Diz que espera um filho…
Não querem ver? E esta?...
Era um grande sarilho:
Lá ía por água abaixo a nossa festa!

Outro:

Ponham-se a andar! Daqui não levam nada!

Animador:

Vamos nós a bailar, rapaziada!
P’ra frente é que é Lisboa!

Voz de S. José:

Ó gente boa!...

Animador:

Lamúrias… Gente boa…

(Dançam um pouco mais, mas sem animação. Desaparecem discretamente da cena.)

Narrador:

Danças, jogos, canções… ah! na disto
Os deixa ouvir a voz dos altos Céus…
Assim negam asilo a JESUS CRISTO;
Assim negam pousada ao próprio DEUS!

Ó Pobrezinhos, colhei silvas, cardos…
Sofrei frios e fomes… amarguras!
Mas nunca perturbeis os felizardos
Que apenas buscam gozos e venturas…

(Dirigindo-se para o local de onde vêm as vozes de JOSÈ e de MARIA; local que foi sempre marcado por um foco de luz:)


Amigo S. José, bom carpinteiro,
E Vós, Senhora Virginal, Sagrada,
Bem sei que trazeis nenhum dinheiro,

Mas ide além. Ali há uma pousada…
Talvez aí se arranje, algum cantinho…
Ainda não está cheia, inda há lugar…


Pois ide lá com Deus; ide tentar…
É aí na curva do caminho,
Bem perto. É a dois passos de Belém;
Aí na estrada de Jerusalém.

É que, por causa de recenseamento,
Muita gente procura alojamento.
E os judeus trataram de arranjar
Hotéis, Pensões… tudo para ganhar
Dinheiro (é evidente…)
Mas essa gente aí não é má gente.
De certo que vos hão-de receber…
Pois é gente de bem.
Ide até lá! Ide com DEUS, bater
À porta da POUSADA DE BELÉM!

IV - ACTO


A POUSADA

(No lado sul do patamar superior. Mesa e duas cadeiras.)

Dono (Consultando o relógio):

É meia-noite, e não posso ir à deita…

A mulher:

Mas está o sono à espreita!
…………………………
As portas estão trancadas?

Dono:

Tão!

A mulher:

E as janelas também estão fechadas?

Dono:

Tão! E já dorme tudo a bom dormir…

A mulher:

Então, marido, temos também de ir…

Dono:

Não! Não! Quero contar ainda o meu dinheiro!

(Põe-se a contar, feliz…)

A mulher (de repente e assustada):

Ó querido, não estás a ouvir passos?

Dono (indiferente):

Não!

A mulher:

Mas eu ouço, eu ouço!...

Dono:

Ó filha, assim não posso
Fazer as minhas contas!...
Não me venhas causar mais embaraços!
Ai as mulheres são cabecinhas tontas!
…………………………………………
…………………………………………
Mas escuta… Vai ver!
Vai aí ao postigo ver quem é.

A mulher:

Ainda mal se enxerga; mal se vê.
Mas quer-me a mim par’cer
Que é gentinha pelintra. Espera!
‘Stão a modos cansados da viagem…
Abrigaram-se além, no muro da Hera…

Dono:

Se para cá vierem, na Estalagem
Não há lugar! Se forem maltrapilhos.
Não estamos p’ra sarilhos!
Vão p’ros acampamentos dos ciganos!
… Mas não virão! Senão, deixa-os comigo!...
………………………………………………

Ouve agora, Mulher, ouve o que digo:
- Eu trago cá uns planos…
Fizemos desta vez um dinheirão.
Já estive a ver. Ganhámos muito bem…
E assim p’ró ano, isto será Pensão
Ou mesmo Hotel… Hein! Tas a ver, Mulher?!
GRANDE HOTEL DE BELÉM!...
E eu grande senhor… Tas bem a ver?!
…Um PALACE HOTEL!...
Até o nosso Primo Samuel
Se morderá de inveja, quando vir…

A mulher:

E a Prima Sara?!...Muito me hei-de eu rir!...

Dono:

Amanhã, irei até à cidade
Comprar uma mobília nova e rica:
Mesas, cadeiras, camas… Tudo em tola
E os tampos de fórmica!

A mulher:

E para mim? Ah! Compra-me uma ‘stola
De peles argentês!

Dono:

Se não for muito caro… Sim talvez.
…………………………………….
E também quero louça de pirex
P’ra mesa e p’ra cozinha…

A mulher:

Mas não esqueças a tua mulherzinha!...
Vai-me trazer, de certo, um bom colar
E um fato de lastex,
P’ra quando eu for à praia passear…
E uns brincos de brilhantes
E uns broches elegantes,
Meias de nylon e chapéu à moda
(Ai que a Sarinha vai morder-se toda!...)
Ah! Não te esqueças de um perfume raro,
Da marca Helena Rubistai
Ou da Marcela Rocha… Não é caro…

Dono:

Pois não, não é! Ai! Ai!...
Nessa não cai o filho do meu pai!
Tu julgarás que eu vou daí abaixo?
Qu’eu ‘stou maluco ou que ando já borracho?
……………………………………………….
Não temos de poupar…
……………………………………………….
… Trago-te um avental e a prestações…
Ou tu não vês que temos de pensar
Nas tais instalações?...
… Pois mesmo todo aquele material

(Mesas, cadeiras, etccetra e tal…)
É porque tem de ser, p’ra chamariz
De mais clientela e freguesia…
…Gastar dinheiro assim, dessa maneira?...
Não!... Não! Fica sabendo: eu antes queria
Ver a arrancada a dentadura inteira!

A mulher:

Meu Deus! Meu Deus! Como eu sou infeliz!...
Já não gostas de mim! Não há direito!...
Nem um broche sequer p’ra pôr ao peito…
P’ra ti… só como escrava de trabalho,
E nada mais!
Ai que vida tão triste!...

(chora)

Dono:

E pronto! São assim cabeças tontas
Estas mulheres não sabem fazer contas!
………………………………………….
…………………………………………..

A mulher:

Parece que bateram… Não ouviste?

Dono:

Querem ver que são eles?! – Não levam nada!
………………………………………………
- Que querem vossemecês?


Voz de S. José:

Ó meu Senhor, venho pedir pousada,
Ao menos para a minha mulherzinha,
Que está no nono mês…

Dono:

Olhem, não vá nascer a criancinha!...
Aqui não há lugar! Pois vão bater
Aí a outras portas…

Voz de S. José:

A estas horas mortas?...
Não é possível, não, ó meu Senhor!

Dono:

Isso não é comigo!...

Voz de S. José:

Por caridade, Amigo!...
Tenha dó por favor…

Dono:

Qual caridade, ou quê!... Qual carapuça!
Ponham-se a andar! Ao largo! Toca a andar!

(À mulher:)

Or’ouve lá! Trataste de fechar
Já o curral da mossa mula ruça?

A mulher (indiferente)

Sim fechei. Porquê?

Dono:

È que esta gente…Percebes?...Bem se vê…
Bem! Vamos nós à vida!
……………………………………………
E esta hein?! Esta agora! … Dar guarida
A gente maltrapilha!
Ora esta!... – Vamos, Filha!
………………………………………….
Olá!... Que cisma é essa?

A mulher:

Não tens nada com isso. É cá comigo!

Dono:

Mas, ó mulher!...

A mulher:

Não sei! Não sei! Não digo!

Dono:

Mas tu não ‘tarás boa da cabeça,
O quê? Cheira-me a esturro!...
Perdeste o piu, ó minha tagarela?

A mulher:

É que inda há pouco tu foste tão casmurro!
…………………………………………….

Voz de S. José:

Ó boa gente! … Tenham pena dela…
‘Stá prestes a ser Mãe…
Minha boa senhora, tenha dó de quem…

A mulher:

Oh! Homenzinho! Vá-se lá embora!
Aqui não há lugar!...

Dono:

Já disse. Toca a andar!
Ou é preciso ir chamar a guarda?

Voz de MARIA:

Bom Senhor… Tenha compaixão!...
Chegou a minha hora; Já não tarda…

Mulher (em aparte para o marido):

…Que voz tão doce!...
Parece que me corta o coração…

Dono:

Mulher, inda se fosse
Gentinha com dinheiro… Mas assim…

Voz de MARIA:

Boa Senhora, tenha dó de mim!
Cá fora sopra rija tempestade.
A noite é um horror!...
Por Deus lhe peço: Faça-me o favor!...

A mulher (em aparte para o marido):

Não sei que hei-de fazer…

Dono:
Já disse! Não abras!

A mulher:

Mas realmente… A noite, o frio, o vento…

Dono:

Que fiquem ao relento
Ou no curral das cabras!

A mulher:

Mas ouve, Filho: E se o Bebé nascer
Lá na rua…De certo, morreria
Com uma noite assim. Que horror!
Ora vê bem… Vê lá…Não é melhor
A gente receber…

Dono:

Não te deixes levar por pieguices!
Não lhe abras a porta. Já ‘tá dito!
E nada de tolices!...

A mulher:

Ó filho!...Mas a noite, a tempestade…
A chuva… a ventania…
Eu sinto o coração aflito…
E o frio?... Não seria
Muito melhor usar de caridade?
…E dar pousada aos pobres peregrinos,
Como a ‘Scritura reza

Em preceitos divinos?...
…Dar-lhes também do pão da nossa mesa…
…Dar-lhes um pouco de café quentinho…
E sentá-los ali, junto à lareira…
E dar-lhes, pelo menos, uma esteira,
Ali, naquele cantinho,
Onde a Senhora, em paz pudesse ter
O Menino que está para nascer?

(chorando)

Já que eu não quis ter nunca essa alegria,
Podia ser que este bebé, um dia
Fosse para nós um filho muito querido…
(chora)
…………………………………………….
…………………………………………….

Narrador:

… Lá fora, continua a tempestade…
… Onde é que eles andarão?...

A mulher (sai à procura dos peregrinos, chorando):

Meu pobre coração sem caridade,
Meu pobre coração,
Também tu estás perdido!...
………………………………………………….
………………………………………………….

Narrador:

Com a alma ardendo em fogo e os olhos rasos de água,
Levando no seu peito uma profunda mágoa,
Esta pobre mulher não se contém…
Corre os caminhos todos de Belém,
A procurar o coração perdido…
………………………………………………………
………………………………………………………

A mulher: (já no meio do patamar superior, chorando):

? Onde é que está aquela voz tão doce?...
? Onde a Senhora que ia dar à luz?...
? Onde meu coração estará escondido?...
…………………………………………………..
………………………………………………….

Narrador:

…E viu raiar no Céu a luz da Esperança!

A mulher:

… OH! Quem me dera que esta luz lá fosse!
………………………………………………

Narrador:

… E viu na manjedoura uma criança,
Olhar todo PERDÃO…. ERA JESUS!

(Entretanto, sinos e órgão começam, pianíssimo e depois num crescendo contínuo, variações sobre o tema do ADESTE FIDELES.)

Narrador:

E é sempre assim, IRMÃOS, assim, tal qual…
Que o Senhor tem na Terra o seu NATAL.

Não finda aqui mistério tão profundo,
Mas continua pela vida fora,
Até ao fim do mundo.


Busca Deus sempre uma alma onde nascer…
Mas quase toda a gente o manda embora,
E só poucos o querem receber…
……………………………………………..

Mas tu, IRMÃO, faz como a pecadora;
- Abre-te a DEUS que em ti quer vir morar
E dar-te a salvação…

Talvez que ELE bata à tua porta agora…

Transforma num presépio o coração!
Teu coração transforma num ALTAR!...

(Órgão, sinos e coros: ADESTE FIDELES.)





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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA – NATAL 2009

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Adeste, fideles, laeti triumphantes;
Venite, venite in Bethlehem.
Natum videte Regem angelorum.
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Publicado este Auto do Natal, sublime tesouro que nos deixou Padre Correia da Cunha, é tempo de deixar o Menino nascer nos nossos corações… Não podemos ficar indiferentes! O mundo não pode ficar igual. Temos de O levar aos sem POUSADA de rostos gretados pelo frio e pelo gélido vento e aos corações estarrecidos pelas noites de invernia. É necessário levá-lo aos centros da política e da finança onde a hipocrisia protocolar esquece os desprotegidos, os abandonados, os excluídos… filhos dilectos deste Deus Menino.



Como referia Padre Correia da Cunha, temos de encontrar o Menino na pureza do curral de Belém que só tem Amor e sorri implorando a paz, amizade, perdão e justiça. Temos de gritar a toda a gente que é possível os homens viverem estas esperanças.



Padre Correia da Cunha sempre acreditou nos homens, pois sabia que todos éramos amados por esse Menino, que Deus nos quis dar. Se O deixarmos realmente nascer no nosso coração ele estará connosco para o proclamarmos bem alto, nas FEIRAS, nos ARRAIAIS e POUSADAS das vielas da nossa paróquia, da nossa cidade e do nosso País.


Neste Natal é preciso descer as longas escadarias daquele presépio e levá-lo onde Ele deve estar: no coração de todos os homens!

Como diria Padre José Correia da Cunha soltai-vos das palavras sem sentido, dos votos fingidos e ide ao encontro do Menino que quer um cantinho no vosso coração. É tempo de esperança! É tempo de dar testemunho a todos…


Santo Natal.


















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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

PE CORREIA DA CUNHA, POUSADA - IV ACTO

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ACOLHER É UM DESAFIO PARA A COMUNIDADE CRISTÃ


O Padre Correia da Cunha era muito autónomo no seu múnus sacerdotal. Nunca requereu coadjutor para a sua Paróquia. Nas precárias instalações que dispunha, para se alojar e alojar os que lhe solicitavam acolhimento, nunca lhe vi recusar pousada. À semelhança de Jesus, acolhia sobretudo aqueles mais frágeis e afastados por motivos de atitude ou livre pensamento…

Hoje recordo:

Rev. Padre José Mitchel: clérigo da Igreja Católica Bizantina que tão bem se integrou na Comunidade Paroquial. Prestou um excelente serviço na Pastoral Juvenil. Para todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo mais de perto - era amoroso, bondoso e inesquecível amigo, e especificamente para nós – um grande exemplo de verdadeiro cristão.

Padre José Diogo d’Orey Mousinho de Albuquerque de Mascarenhas Gaivão (1934-1980) : aquele que almejava os valores da liberdade política e neles se empenhava com graves sacrifícios para a sua vida no serviço aos oprimidos pelo regime então vigente. Brilhante professor de Religião e Moral no Colégio Valsassina de Lisboa, que era uma referência de excelência do ensino particular em Portugal, já no período anterior ao 25 de Abril.

Padre Ismael Sanches OBS: padre religioso e grande intelectual com fortes ligações à Juventude Universitária Católica e ao ensino, com posições teológicas que valorizavam os direitos humanos e as transformações sociais.


Estes são apenas alguns dos muitos que Padre Correia da Cunha acolheu na sua Pousada Paroquial de São Vicente de Fora.

Padre Correia da Cunha preocupava-se e comprometia-se com aqueles que precisavam de apoio e de serem cativados. Padre Correia da Cunha sempre pensou pela sua própria cabeça e nunca prestou vassalagem fosse a quem fosse. Só se submetia aos favores de Deus e ao seu auxílio.

A Paróquia de São Vicente de Fora serviu de pousada a muitos mais… porque Padre Correia da Cunha, por seu próprio temperamento e por todas as suas profundas convicções, deveria ser sempre aquele pastor, de coração aberto, que acolhia todas as pessoas independentemente da sua situação. Não se preocupava com as severas criticas que lhe poderiam ser apontadas e sempre o fez sem consultar os seus superiores.

Na verdade o amor para ele era assim!














A POUSADA






(No lado sul do patamar superior. Mesa e duas cadeiras.)

Dono (Consultando o relógio):

É meia-noite, e não posso ir à deita…

A mulher:

Mas está o sono à espreita!
…………………………
As portas estão trancadas?

Dono:

Tão!

A mulher:

E as janelas também estão fechadas?

Dono:

Tão! E já dorme tudo a bom dormir…

A mulher:

Então, marido, temos também de ir…

Dono:

Não! Não! Quero contar ainda o meu dinheiro!

(Põe-se a contar, feliz…)




A mulher (de repente e assustada):

Ó querido, não estás a ouvir passos?

Dono (indiferente):

Não!

A mulher:

Mas eu ouço, eu ouço!...

Dono:

Ó filha, assim não posso
Fazer as minhas contas!...
Não me venhas causar mais embaraços!
Ai as mulheres são cabecinhas tontas!
…………………………………………
…………………………………………
Mas escuta… Vai ver!
Vai aí ao postigo ver quem é.

A mulher:

Ainda mal se enxerga; mal se vê.
Mas quer-me a mim par’cer
Que é gentinha pelintra. Espera!
‘Stão a modos cansados da viagem…
Abrigaram-se além, no muro da Hera…

Dono:

Se para cá vierem, na Estalagem
Não há lugar! Se forem maltrapilhos.
Não estamos p’ra sarilhos!
Vão p’ros acampamentos dos ciganos!
… Mas não virão! Senão, deixa-os comigo!...
………………………………………………


Ouve agora, Mulher, ouve o que digo:
- Eu trago cá uns planos…
Fizemos desta vez um dinheirão.
Já estive a ver. Ganhámos muito bem…
E assim p’ró ano, isto será Pensão
Ou mesmo Hotel… Hein! Tas a ver, Mulher?!
GRANDE HOTEL DE BELÉM!...
E eu grande senhor… Tas bem a ver?!
…Um PALACE HOTEL!...
Até o nosso Primo Samuel
Se morderá de inveja, quando vir…

A mulher:

E a Prima Sara?!...Muito me hei-de eu rir!...

Dono:

Amanhã, irei até à cidade
Comprar uma mobília nova e rica:
Mesas, cadeiras, camas… Tudo em tola
E os tampos de formica!

A mulher:

E para mim? Ah! Compra-me uma ‘stola
De peles argentês!

Dono:

Se não for muito caro… Sim talvez.
…………………………………….
E também quero louça de pirex
P’ra mesa e p’ra cozinha…


A mulher:

Mas não esqueças a tua mulherzinha!...
Vai-me trazer, de certo, um bom colar
E um fato de lastex,
P’ra quando eu for à praia passear…
E uns brincos de brilhantes
E uns broches elegantes,
Meias de nylon e chapéu à moda
(Ai que a Sarinha vai morder-se toda!...)
Ah! Não te esqueças de um perfume raro,
Da marca Helena Rubistai
Ou da Marcela Rocha… Não é caro…

Dono:

Pois não, não é! Ai! Ai!...
Nessa não cai o filho do meu pai!
Tu julgarás que eu vou daí abaixo?
Qu’eu ‘stou maluco ou que ando já borracho?
……………………………………………….
Não temos de poupar…
……………………………………………….
… Trago-te um avental e a prestações…
Ou tu não vês que temos de pensar
Nas tais instalações?...
… Pois mesmo todo aquele material



(Mesas, cadeiras, etccetra e tal…)
É porque tem de ser, p’ra chamariz
De mais clientela e freguesia…
…Gastar dinheiro assim, dessa maneira?...
Não!... Não! Fica sabendo: eu antes queria
Ver a arrancada a dentadura inteira!


A mulher:

Meu Deus! Meu Deus! Como eu sou infeliz!...
Já não gostas de mim! Não há direito!...
Nem um broche sequer p’ra pôr ao peito…
P’ra ti… só como escrava de trabalho,
E nada mais!
Ai que vida tão triste!...

(chora)


Dono:


E pronto! São assim cabeças tontas
Estas mulheres não sabem fazer contas!
………………………………………….
…………………………………………..

A mulher:

Parece que bateram… Não ouviste?

Dono:

Querem ver que são eles?! – Não levam nada!
………………………………………………
- Que querem vossemecês?


Voz de S. José:

Ó meu Senhor, venho pedir pousada,
Ao menos para a minha mulherzinha,
Que está no nono mês…

Dono:

Olhem, não vá nascer a criancinha!...
Aqui não há lugar! Pois vão bater
Aí a outras portas…

Voz de S. José:

A estas horas mortas?...
Não é possível, não, ó meu Senhor!

Dono:

Isso não é comigo!...

Voz de S. José:

Por caridade, Amigo!...
Tenha dó por favor…

Dono:

Qual caridade, ou quê!... Qual carapuça!
Ponham-se a andar! Ao largo! Toca a andar!

(À mulher:)

Or’ouve lá! Trataste de fechar
Já o curral da mossa mula ruça?

A mulher (indiferente)

Sim fechei. Porquê?

Dono:

È que esta gente…Percebes?...Bem se vê…
Bem! Vamos nós à vida!
……………………………………………
E esta hein?! Esta agora! … Dar guarida
A gente maltrapilha!
Ora esta!... – Vamos, Filha!
………………………………………….
Olá!... Que cisma é essa?

A mulher:

Não tens nada com isso. É cá comigo!

Dono:

Mas, ó mulher!...

A mulher:

Não sei! Não sei! Não digo!

Dono:

Mas tu não ‘tarás boa da cabeça,
O quê? Cheira-me a esturro!...
Perdeste o piu, ó minha tagarela?


A mulher:

É que inda há pouco tu foste tão casmurro!
…………………………………………….

Voz de S. José:

Ó boa gente! … Tenham pena dela…
‘Stá prestes a ser Mãe…
Minha boa senhora, tenha dó de quem…

A mulher:

Oh! Homenzinho! Vá-se lá embora!
Aqui não há lugar!...

Dono:

Já disse. Toca a andar!
Ou é preciso ir chamar a guarda?


Voz de MARIA:

Bom Senhor… Tenha compaixão!...
Chegou a minha hora; Já não tarda…

Mulher (em aparte para o marido):

…Que voz tão doce!...
Parece que me corta o coração…

Dono:

Mulher, inda se fosse
Gentinha com dinheiro… Mas assim…

Voz de MARIA:

Boa Senhora, tenha dó de mim!
Cá fora sopra rija tempestade.
A noite é um horror!...
Por Deus lhe peço: Faça-me o favor!...

A mulher (em aparte para o marido):

Não sei que hei-de fazer…

Dono:
Já disse! Não abras!

A mulher:

Mas realmente… A noite, o frio, o vento…

Dono:

Que fiquem ao relento
Ou no curral das cabras!

A mulher:

Mas ouve, Filho: E se o Bebé nascer
Lá na rua…De certo, morreria
Com uma noite assim. Que horror!
Ora vê bem… Vê lá…Não é melhor
A gente receber…


Dono:

Não te deixes levar por pieguices!
Não lhe abras a porta. Já ‘tá dito!
E nada de tolices!...

A mulher:

Ó filho!...Mas a noite, a tempestade…
A chuva… a ventania…
Eu sinto o coração aflito…
E o frio?... Não seria
Muito melhor usar de caridade?
…E dar pousada aos pobres peregrinos,
Como a ‘Scritura reza

Em preceitos divinos?...
…Dar-lhes também do pão da nossa mesa…
…Dar-lhes um pouco de café quentinho…
E sentá-los ali, junto à lareira…
E dar-lhes, pelo menos, uma esteira,
Ali, naquele cantinho,
Onde a Senhora, em paz pudesse ter
O Menino que está para nascer?

(chorando)

Já que eu não quis ter nunca essa alegria,
Podia ser que este bebé, um dia
Fosse para nós um filho muito querido…
(chora)
…………………………………………….
…………………………………………….


Narrador:

… Lá fora, continua a tempestade…
… Onde é que eles andarão?...

A mulher (sai à procura dos peregrinos, chorando):

Meu pobre coração sem caridade,
Meu pobre coração,
Também tu estás perdido!...
………………………………………………….
………………………………………………….

Narrador:

Com a alma ardendo em fogo e os olhos rasos de água,
Levando no seu peito uma profunda mágoa,
Esta pobre mulher não se contém…
Corre os caminhos todos de Belém,
A procurar o coração perdido…
………………………………………………………
………………………………………………………


A mulher: (já no meio do patamar superior, chorando):


? Onde é que está aquela voz tão doce?...
? Onde a Senhora que ia dar à luz?...
? Onde meu coração estará escondido?...
…………………………………………………..
………………………………………………….

Narrador:

…E viu raiar no Céu a luz da Esperança!

A mulher:

… OH! Quem me dera que esta luz lá fosse!
………………………………………………

Narrador:

… E viu na manjedoura uma criança,
Olhar todo PERDÃO…. ERA JESUS!

(Entretanto, sinos e órgão começam, pianíssimo e depois num crescendo contínuo, variações sobre o tema do ADESTE FIDELES.)

Narrador:

E é sempre assim, IRMÃOS, assim, tal qual…
Que o Senhor tem na Terra o seu NATAL.

Não finda aqui mistério tão profundo,
Mas continua pela vida fora,
Até ao fim do mundo.


Busca Deus sempre uma alma onde nascer…
Mas quase toda a gente o manda embora,
E só poucos o querem receber…
……………………………………………..

Mas tu, IRMÃO, faz como a pecadora;
- Abre-te a DEUS que em ti quer vir morar
E dar-te a salvação…

Talvez que ELE bata à tua porta agora…

Transforma num presépio o coração!
Teu coração transforma num ALTAR!...


(Órgão, sinos e coros: ADESTE FIDELES.)


LAUS DEO

VIRGINIQUE MARIAE




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sábado, 12 de dezembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA, ARRAIAL – III ACTO

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‘’Folgar, bailar, gozar, rapaziada! ‘‘




Quem não se lembra ainda dos arraiais organizados pelo Padre Correia da Cunha, na cerca de São Vicente de Fora, onde se tocava e dançava, comia e bebia pela noite dentro? Quem não se lembra da fogueira ateada para se saltar, as tômbolas, as quermesses e os bazares com os respectivos sorteios? Quem não se lembra dos vendedores de alcachofras e manjericos que por essa época davam um aspecto diferente e festivo à freguesia?

Era desta forma que Padre Cunha celebrava as típicas festas da sua amada cidade, visando aglomeraria de dinheiro para as suas obras sociais.

Estes arraiais eram muito do agrado popular e haviam verdadeiras multidões a participar nestas suas realizações. No seu auto de Natal, obviamente, não podia deixar de comportar estas manifestações, onde os imperativos principais eram: o divertimento do jogo, o bailarico e os comes e bebes…


Não havia espaço para ouvir a Voz do PAI…







ARRAIAL



Um Jogador:

Eh! Lá! O trunfo é espadas!

Outro:

Eu corto com a manilha!

Outro:

Cartas mal baralhadas,
Olhem lá que favor, que maravilha!...

4º Jogador

Vamos a ver quem ganhou!

1º Jogador

Ou quem perdeu!

2º Jogador (cantando):

Sete e três, dez mais vinte fazem trinta!...

3º Jogador

Eu logo disse: Cá co Xico ninguém brinca!

1º Jogador:

Quem não perdeu fui eu!
Isto foi um fartote!
Vocês os dois levaram um capote
De alto lá com charuto!

2º Jogador

Que lhe sirva ganhar à tripa forra!

1º Jogador

Guarde o dinheiro, homem, não seja bruto!

4º Jogador

Você daqui não sai. Quero a desforra!

(Entretanto, começa a tocar-se e a bailar-se.)


Animador:

Amigos, é gozar, que a vida é bela!
Não demos cabo dela!
Toca! Toca a brincar, rir e folgar!
Não percam tempo, não! Toca a bailar!


(Há bailarico. Anima-se a dança, durante algum tempo. Um dos assistentes ao baile, pessoa pacata, dá umas voltas. Depois diz:)


Zé Pacato:

Ih! Como o vento guincha!
E chove a potes, e faz muito frio! Puxa!
Nada!...Que eu só espreitei por aquela frincha,
Mas aquilo é de estucha!...

Animador:

Qu’importa a tempestade;
Que importa a ventania,
Se aqui a mocidade
Está quente de alegria?!...

È bailar e dançar, rapaziada,
E não pensemos no que vai lá fora!
Folgai! Bailai! Gozai a toda a hora,
…Que tudo o mais… é nada!


(Continua um pouco mais a animação do bailarico. Depois, pouco a pouco, vai-se ouvindo o órgão com o mesmo tema Rorate. Novamente o Coro dos Homens canta uma das estrofes e uma vez o Refrão.)


Um do Arraial:

Que raio de canto é este tão tristonho?

Outro:

E mesmo melancólico, enfadonho…

Animador:

Eh! Pá! Não faças caso. Orelhas moucas
É o que merecem tais palavras loucas!

Outro:

…Abram-se os Céus e chova!... Chova o quê?!...
- Vinho, gozo e prazer, pais já se vê!

Animador:

Folgar, bailar, gozar, rapaziada!
E não pensemos no que vai lá fora.
Gozar, gozar, gozar, a toda a hora,
Que tudo o mais…é nada!

Zé Pacato:

Eh! Camaradas, parem lá com isso!

Animador:

Então que há?

Animador:

Então que há?

Zé Pacato:

Não sei. Mas há enguiço! Sinto gente lá fora. Quem será?

Animador:

Não faças caso, Pá!

Voz de S. José:

Ó gente boa! Dêem, por favor…

Animador:

Olha! Vêm pedir! – Ponham-se a andar!
Fora daqui! Não venham perturbar
Este arraial em festa de alegria!


Voz de S. José:

Amigos meus, reparem que Maria,
A minha Santa Esposa…

Todos:

Rua! Andor!

Voz de MARIA:

Ó almas boas, tenham dó, piedade
De uma mulher que em breve vai ser Mãe!
E eis quase chegada a sua hora!


Todos:

Embora! Embora! Embora!

Voz de MARIA:

Cá fora sopra rija tempestade!
É grande o vendaval e o frio também…

Animador:

Olhem que fita!... Diz que espera um filho…
Não querem ver? E esta?...
Era um grande sarilho:
Lá ía por água abaixo a nossa festa!

Outro:

Ponham-se a andar! Daqui não levam nada!


Animador:

Vamos nós a bailar, rapaziada!
P’ra frente é que é Lisboa!

Voz de S. José:

Ó gente boa!...

Animador:

Lamúrias… Gente boa…

(Dançam um pouco mais, mas sem animação. Desaparecem discretamente da cena.)

Narrador:

Danças, jogos, canções… ah! na disto
Os deixa ouvir a voz dos altos Céus…
Assim negam asilo a JESUS CRISTO;
Assim negam pousada ao próprio DEUS!

Ó Pobrezinhos, colhei silvas, cardos…
Sofrei frios e fomes… amarguras!
Mas nunca perturbeis os felizardos
Que apenas buscam gozos e venturas…

(Dirigindo-se para o local de onde vêm as vozes de JOSÈ e de MARIA; local que foi sempre marcado por um foco de luz:)


Amigo S. José, bom carpinteiro,
E Vós, Senhora Virginal, Sagrada,
Bem sei que trazeis nenhum dinheiro,

Mas ide além. Ali há uma pousada…
Talvez aí se arranje, algum cantinho…
Ainda não está cheia, inda há lugar…

Pois ide lá com Deus; ide tentar…
É aí na curva do caminho,
Bem perto. É a dois passos de Belém;
Aí na estrada de Jerusalém.

É que, por causa de recenseamento,
Muita gente procura alojamento.
E os judeus trataram de arranjar
Hotéis, Pensões… tudo para ganhar
Dinheiro (é evidente…)
Mas essa gente aí não é má gente.
De certo que vos hão-de receber…
Pois é gente de bem.
Ide até lá! Ide com DEUS, bater
À porta da POUSADA DE BELÉM!






Continua...4º ACTO - A POUSADA

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA, A FEIRA - II ACTO

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‘’ A vida é Sol de pouca duração! Haja dinheiro prá reinação!



O teatro era uma forma de se reflectir no palco os conteúdos da alma humana.

Padre Correia da Cunha com este auto pretendia interpelar cada um de nós, a ouvirmos o apelo de Deus que vem rogar um cantinho no nosso coração para nascer…

Padre Correia da Cunha sempre procurou transformar o teatro em profundas e verdadeiras doutrinações. Nesta sua obra imana uma sensação de naturalidade e simplicidade. Por isso afirmava que não tinha criado nada, apenas observava aquilo que o rodeava. Para conceber, inspirava-se no seu meio. Esta II CENA, a Feira, evoca a Feira da Ladra que atravessava constantemente a caminho do Hospital da Marinha, quando ali era Capelão Militar. Atravessar aquele espaço do Campo de Santa Clara repleto de feirantes, vendedores, compradores… era para ele um momento mágico de ânimo. Nenhuma barraca era igual, todas eram diferentes como as árvores num bosque. Um formigueiro de pessoas num lufa-lufa de compradores e vendedores onde o única coisa que contava era o dinheiro e negócio bem sucedido…








A FEIRA


Um Feirante:

Eh! Freguesia! Eh Freguesia! Aqui!
Aqui é tudo muito mais baroto!
Há fatos de Kaki
Dos grandes e pequenos;
E todos custam menos
Do que em qualquer lugar da nossa praça!


Eh! Lá! Freguês! Você não quer um fato?
Aproveite, Freguês, isto é de graça!
Ora, venha cá ver como isto é bom!
É chic! È de bom tom!
De corte americano!
E é do melhor pano!...

Também tenho de alpaca e de fazenda,
De tirilene e de óptimo algodão!...

Outro Feirante:

Olá, Menina, quer lençóis de renda?
Não perca a ocasião,
Não perca esta pechincha!...


Um garoto (Pedindo):

Minha Senhora, dá-me um tostãozinho?


Um feirante:


- Vai-te embora, rapaz, deixa a pedincha!

Outro Feirante:

Pst! Pst! Menina, venha cá!
Repare nesta saia
E veja esta blusa!
Belo conjunto para campo ou praia!
É o que agora se usa!...


Outro Feirante:

Quem quer comprar agulhas e dedais,
Pentes e alfinetes e outras coisas mais?
Agulhas de crochet,
Agulhas de tricot,
Filtros para café!...


Garoto (cantarolando)

Ai ló! Ai ló!
Ai ló! Ai ló! Ai ló!
Mamã compra um balão
Para a marcha à flambó!


Outro Feirante:

Eh! Meus Senhores! Venham cá ver isto!
Material assim nunca foi visto!
São brincos de senhora,
Que toda a moça adora!
Alfinetes, anéis e arrecadas,
E lindos pedantifs e correntes,
Berliques e berloques!


Um garoto (tenta mexer).

O Feirante:

- Ó mariola, vê, mas não lhe toques!

Outro feirante:

Abanicos pintados! Lindos leques!


(Pai e filha passam. Ela cobiça com o olhar. Ele diz:)

- Ó Filha, são todos pechisbeques!

Vendedor ambulante:

Escovas prós dentes!

Outro Vendedor:

Pós p’ra limpar metais!


Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões! Freguês, 3 pentes!

Outro Vendedor:

Esticadores pró colarinho!

Outro Vendedor:

Panelas, tachos, vidros e cristais!


Charlatão:


Senhoras e Senhores!
Não venho aqui para enganar ninguém,
Nem sequer p’ra vender mercadoria…
Venho p´ra vos livrar das vossas dores
E dar-vos alegria!
Venho trazer-vos um imenso bem!
Eis, Senhores, a maravilha ideal,
A descoberta mais sensacional,
Eis a piramidal,
Eis a fenomenal,
A grande panaceia,

Usada já no mundo inteiro e agora
Também em Portugal, em boa hora!
Boa p’ra tudo, até p’ra diarreia…

Na Rússia e na França,
Na Austrália e na Argentina
Na Pérsia, Alcabideche e até na China,
Em toda a parte onde o progresso avança
Veio revolucionar toda a ciência!
E agora é a grande esp’rança
Do povo português!
Ó Freguês! Ó Freguês!
Vossa Excelência,
Tome estes poses se quer ter saúde!
São bons, fenomenais e bem baratos
E cheios de virtude

Prós calos e prós ratos!
São infalíveis estes poses finos
Para as dores de barriga e de intestinos!

Quase nem se acredita…


E o preço? O preço? Oh! Em qualquer botica
Custava um dinheirão!
E aqui?... Custa cem escudos? – Não !
Cincoenta? … - Não! Quarenta? – Também não!
Vejam, Senhores, apenas dez mil réis!


Outro Feirante:

Tintas, vernizes, brochas e pincéis!
Aguarelas e quadros bons a óleo!


Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões!

Outro Vendedor:

Amendoins, tremoços e pinhões!

Todos os Feirantes:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Um Feirante:

Amigos, dinheirinho já cá canta:
Notas, cheques e letras!

Todos:

O dinheirinho é que nos encanta
E tudo o mais… são tretas!

Um outro (cantarolando)

Haja dinheiro!
Olé! Olé!
Esse matreiro
É a nossa Fé!

Outro:

Haja dinheiro
Com abastança
Esse matreiro
É a nossa Esperança!

Outro:

Haja dinheiro,
El dá valor!
Esse matreiro
É o nosso Amor!


Outro:

El’ nos dá tudo,
Amigos meus!
O bom do escudo
É o nosso Deus!

Outro:

Honra, Virtude
Que significa?
… Tudo se ilude
Se a gente é rica!...

Todos:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Oh! Gente boa! Eh! Lá! Gente de bem!...
Não arranjais aí algum lugar,
Onde minha mulher possa ficar?...
Está prestes a ser Mãe!...

Todos:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Há tanto vento e frio aqui na estrada…
…Mas com franqueza, não se arranja nada?...
Nem sequer um cantinho para acolher?

O DEUS MENINO QUE NOS VAI NASCER?

? Não há lugar para o Salvador do Mundo?...

Um feirante:

Quem chora aí lamúrias e tristezas?

Outro:

Quem é? O que é que ele diz?

Outro ( que fora espreitar):

Sei lá!... É um infeliz!
Um maltês vagabundo!...
Anda pedindo esmola, com certeza!


Voz de S. José:

Oh! Boa gente amiga!...

Um feirante:

Muda lá de cantiga!...

Voz de S. José:

OH! Boa gente!...

Outro:

Diz que tem frio e fome!

Outro:

Que temos nós com isso!?
Mas que é que nos importa?
Diz-lhe que vá bater a outra porta!

Outro:

Ou então que aguente;
Que aguente, que é serviço!
Daqui não levam nada,
Maltrapilhos da estrada!...
O quê!? Irmos gastar
Dinheiro que estivemos a ganhar
Com gente dessa? – Não!

Voz de Maria:

Oh! Gente boa! Tenham compaixão!...
Vai nascer o MENINO…
Deixem-me aí ficar, por caridade…

Um feirante:

Rua! Gente sem tino,
Que isto aqui não é Maternidade!...

(Todos riem da piada blasfema. Gargalhadas. Vão saindo de cena. O órgão
Entretanto começa a introduzir o Coro dos Homens, fazendo variações sobre o tema Rorate).

Coro dos Homens:

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

1ª Quadra:

Perdida está a humanidade,
Tal qual o náufrago no mar.
Senhor, lançai-nos, por bondade,
A vossa Mão p’ra nos salvar!


Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

2ª Quadra:

O mundo vive em treva espessa,
Sem uma réstia de luz.
Cumpri, Senhor, vossa promessa:
Vinde até nós: - dai-nos JESUS!

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

3ª Quadra:

Na Terra, só miséria habita;
Bem triste é nossa condição.
Ouvi, Senhor, a nossa alma aflita,
Dai-nos a Paz, a Salvação!


Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

(Enquanto o Coro se vai extinguindo ao longe, arma-se o ARRAIAL: mesa de jogo, mesa de vinho e bailarico com a respectiva música.)


Continua...3º ACTO - ARRAIAL
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E O AUTO DE NATAL

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‘’LAUS DEO VIRGINIQUE MARIǢ’’




‘’A primeira representação deste AUTO DE NATAL, em 24 de Dezembro 1961, só foi possível graças ao entusiasmo do Povo da Freguesia de São Vicente de Fora e à valiosíssima colaboração de Catarina Avelar, na voz de Maria, de Álvaro Benamor, na de São José e de Luís Filipe que fez o papel do Narrador.

A Pedro Lemos se ficaram a dever as suas preciosas indicações de encenação e os ensaios dos restantes figurantes – gente do povo – e à Câmara Municipal de Lisboa o alto patrocínio com que secundou a iniciativa.

Bem Hajam!

Padre Correia da Cunha’’

Em 1962, Padre Correia da Cunha publicou o seu AUTO DO NATAL.

Passados 48 anos da sua primeira representação, será publicada ao longo da Caminhada do Avento 2009 esta magnífica obra de Padre Correia da Cunha.

As feiras da ladra foram substituídas pelas grandes catedrais do consumo e os arraiais populares pelas discotecas. Certamente, Padre Correia da Cunha se hoje escrevesse esta sua obra, a Feira seria substituída pelo centro comercial e o arraial pela boite.

Mas ontem, como hoje, precisamos de corrigir o nosso percurso de vida cristã: preparando o nosso coração pecador para acolher JESUS CRISTO!

E a melhor maneira de acolhermos Jesus Cristo é viver como ele nos ensinou, com a sua palavra e a sua vida.

Enquanto foi vivo, o Padre Correia da Cunha procurava proporcionar aos mais pobres da Paróquia um NATAL mais feliz, fazendo distribuir centenas de cabazes de Natal e algum dinheiro; gesto que tive o privilégio de presenciar, testemunhar e colaborar nessa sua gratificante iniciativa.

Como era possível deixar o rasto de Jesus Cristo Menino nos irmãos mais abandonados e desprotegidos, sendo a Paróquia tão carenciada de meios materiais?

Fazia parte da missão de Padre Correia da Cunha conviver positivamente com grupos de serviço à comunidade (Lyons), com a preocupação de suscitar gestos de partilha com esta comunidade de desprotegidos de São Vicente de Fora, assim como as imensas iniciativas de solidariedade que levava a efeito na Comunidade Paroquial, porque o Natal para Padre Correia da Cunha tinha que ser para todos.

Jesus Cristo veio ao mundo para todos…






AUTO DO NATAL


NARRADOR (Dirigindo-se a toda a Assembleia):

Senhoras e Senhores,
Operários ou doutores,
Velhinhos ou crianças,
Que andais nestas andanças
A que chamamos VIDA,
- Parai aí um pouco em vossa lida
E vinde meditar neste mistério
Tão repetido pelos séculos fora!...
(Seja dito sem ofensa ou vitupério
Da pobre Humanidade pecadora.)

A acção que vai ser representada
Pode chamar-se, à bela moda antiga,
O AUTO DA ESTALAGEM OU POUSADA,
Ou, se quiserem, boa gente amiga,

Poderemos chamar-lhe assim também
(Ao jeito da moderna poesia):
ALGÚÉM LÁ FORA BATE À MINHA PORTA!...

… Qualquer designação lhe fica bem.
É só questão de gosto ou fantasia.
Mas, francamente, o nome pouco importa.
Tudo pode chamar-se
Este Auto de ONTEM, de HOJE e de AMANHÃ…
? Ou não será verdade
Que a nossa pobre Humanidade
(E até muita alma que se diz cristã)
O que sabe fazer é só fechar-se,
Mesmo quando JESUS lhe bate à porta?...
Púnhamos, pois, de parte o nome a dar
Ao Auto que se vai representar,
Que o nome, francamente, pouco importa.


Mas, atenção, ó Bons Amigos meus!
Ouçamos em silêncio e muito a sério,
Pois vai aqui tratar-se do mistério
De cada um de nós com o próprio Deus!...

Aí, nesse primeiro patamar
Desta tão bela e nobre escadaria,
Muita gente andará em gritaria,
Apenas a vender e a comprar,
Trocando os bens e … honra por dinheiro…
(Não é assim que faz o mundo inteiro?)
Oh! Que tristeza é transformar a vida
Numa FEIRA DA LADRA… e nada mais!

Nesse mesmo local,
Cantigas, algazarras e berreiros
Se ouvirão depois num ARRAIAL
De jogos vis e gozos traiçoeiros,
De alegria bruta, falsa e oca!


Oh! Que tristeza é tanta gente louca,
Pensando só em si, no seu prazer,
Esquecendo o luto e a dor que vão lá fora!..
Triste alegria a que não sabe ter
Um coração aberto p’ra quem chora!...

Mais adiante, além,
Aquela casa de aparência calma
É a nossa POUSADA DE BELÉM,
Ou, se quiserem, a figuração
Da mísera POUSADA DA NOSSA ALMA,
Que fecha a porta à própria salvação!


Aqui, ali, de lado, à frente, atrás,
São ruas e caminhos,
Estradas boas e más,
Da sempre actual ALDEIA DE BELÉM.

Cansada de uma longa caminhada,
Anda aflito um PAR DE POBREZINHOS,
Batendo a toda a porta, aqui e além,
À procura de abrigo ou de pousada,
…Que a Senhora está prestes a ser Mãe…

Será preciso pôr-se mais na carta,
Para saberem já de quem se trata?
- È JOSÉ E MARIA, pois de certo!

Não os veremos, não. Mas andam perto,
Tão pertinho de nós
Que todos ouviremos sua voz.

Um coro de homens está além, de lado,
Representando a pobre Humanidade

Que geme sob o peso do pecado
E sofre a fome da felicidade…

Ei-los sempre a pedir a salvação,
Que, afinal, não aceitam, quando vem!...

È sempre o mesmo drama de Belém,
O drama da humana condição…

Coro dos Homens:

SENHOR DEUS, MISERICÓRDIA!
(3 vezes)

Coro dos Anjos:

(Solo): GLÓRIA IN EXCELSIS DEO!
(Todos): GLÓRIA IN EXCELSIS DEO!

(Dueto): Anjinhos Celestiais,
Cantemos hinos de louvor
Ao grande infinito amor
Do SENHOR pelos mortais!


(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): Sabeis que se vai passar,
O que vai acontecer?
- Por um milagre sem par,
Deus na Terra vai nascer!

(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): Oh! Quão grande é o SENHOR!
Quão grande o poder divino!
Pois num milagre d’amor
Deus irá nascer Menino!

(Todos): GLORIA… etc.

(Dueto): E na pobre humanidade,
Surgirá divina esp’rança,
Quando (oh! Santa caridade!)
O próprio Deus for criança!

(Todos): GLORIA… etc.

(Repete-se o último coro, diminuindo até desaparecer. Entretanto, outros Anjos recitam:)

1º Anjo:

Corramos, Anjinhos!
Depressa, Amiguinhos!
Vamos todos ver
A grande alegria
Que em festa este dia
A Terra vai ter!

2º Anjo:

Deus Homem vai ser…
E que vão fazer
Na Terra os Mortais?...
Para o BOM JESUS~
Palácios de luz,
Arcos triunfais!

NARRADOR (Dialogando com o 2º Anjo):

Deus Homem vai ser.
E que vão fazer
Na Terra os Mortais?...
Ao SENHOR DA VIDA
Vão dar-lhes a guarida
Que é dos animais!...

2º Anjo (mesma cena):

Eles vão com certeza
Encher de beleza
Todos os caminhos!...
Irão’spalhar rosas
E flor’s mimosas
Para os seus pezinhos!...

NARRADOR (mesma cena):

El’s vão com certeza
Encher de tristeza
Todos os caminhos…
E em vez de mimosas
Pétalas de rosas,
Irão dar-Lhe espinhos!...

2º Anjo (mesma cena):

Que vão lá fazer
Assim que nascer
O VERBO DIVINO?...
- Vão dar-Lhe um tesouro
E um bercinho de ouro
Para o DEUS MENINO!...

NARRADOR (mesma cena):

Que vão lá fazer,
Assim que nascer
O VERBO DIVINO?...
Irão escorraça-lo,
Irão maltratá-lo
Desde pequenino!

2º Anjo:

O que vão fazer?
Pois agradecer,
Cantando de amor…
E assim nosso Deus
Verá que nos céus
Não se está melhor!

NARRADOR:

O que vão fazer,
Quando Deus nascer,
Será um horror!...
E assim o ETERNO
Terá um inferno
De amargura e dor!...

1º e 2º Anjos

JESUS vai nascer!
Vamos todos ver
O que lá se faz…
De certo na Terra
Acaba-se a guerra
E haverá só paz!

……
……

NARRADOR (Dirigindo-se à Assistência):

Enquanto lá no Céu reina a alegria,
Há festa e regozijo
Pelo mistério que se vai passar,
Haverá cá na Terra algum juízo
Capaz de despertar
Amor ou simpatia
Ou mera compaixão?...
Haverá neste mundo alguém que queira
Ofertar uma cama ou uma esteira
Ao CASAL PEREGRINO,
Para que o SENHOR DEUS,
Que os Anjos adoram lá nos Céus,
Possa entre nós nascer feito MENINO?...

Vamos a ver, Irmãos, vamos a ver
Se os homens sempre arranjam um cantinho,
Inda que muito humilde e pobrezinho,
Onde o SENHOR DOS CÉUS possa nascer!

(Dirigindo-se aos Feirantes:)

Eh! Lá! Vocês, que são negociantes,
Compradores e feirantes,
Instalem-se p´raí na vossa lida
E façam normalmente a vossa vida!

(Para a Assistência:)

Serão estes capazes de escutar
Os apelos de DEUS que vem rogar
Um cantinho qualquer onde nascer,
Feito mortal como qualquer de nós?
Serão eles capazes de dizer
Que sim à Sua voz?...


(Filosofando:)

Ah! O dinheiro tem um tal encanto,
Desperta tal cobiça,
Prende e fascina tanto,
De tal modo enfeitiça,
…Que os pobres homens a que el’ seduz
Não são capazes de escutar JESUS!


Ah! Os negócios fazem tais ruídos
E a ganância faz tanto escarcéu,
… Que eu não sei bem se eles terão ouvidos
Capazes de entender a voz do Céu!...

Continua – 2º acto - A FEIRA
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terça-feira, 24 de novembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E O SILÊNCIO

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‘’É PRECISO OUVIR O SILÊNCIO…’’



Pe. Correia da Cunha, nos anos sessenta, quando regressava a casa, perto da meia-noite e havia um velório na casa mortuária da paróquia, aproveitava para apresentar sempre uma palavra de conforto e profunda amizade aos familiares mais próximos do defunto e fazer um momento solene de oração com todos os presentes.

No final recomendava que se encerrasse a câmara ardente e que todos procurassem descansar um pouco, pois os sacrifícios desprendidos com o seu ente querido já teriam sido bastante penosos e dolorosos. Agora, ele já estava em Paz e nos braços do Pai; apenas precisava das nossas orações.

Naquele tempo, esta proposta era energicamente recusada, a tradição não permitia que o falecido ficasse sem a última companhia dos seus familiares mais próximos. Passados quarenta anos aquele desejo sincero de Padre Correia da Cunha é um dado adquirido em todas as comunidades. Padre Correia da Cunha via sempre mais à frente…


Padre Correia da Cunha aproveitava também para com a sua habitual frontalidade chamar atenção e reprovar freneticamente aquele ‘’chavascal’’, que lhe metia dó. Grande parte dos presentes, naquele espaço, aproveitavam para pôr em dia, as amizades que não eram vistas há muito tempo. Falava-se do fulano que também morreu assim… do sicrano que morreu não se sabe como… porque a vida é uma roda… porque só morrem os bons… Todos sabemos que nestas alturas, como toque de arte e magia, toda a gente que morre é transformada numa excelente pessoa …e havia até quem aproveitasse para pôr o desporto e as anedotas em dia. Estes comportamentos chocavam Padre Correia da Cunha e daí a sua profunda indignação.

Para Padre Correia da Cunha aquele local era de respeito, silêncio e oração. A ocasião deveria ser aproveitada, para em silêncio absoluto, pedirmos ao Pai que acolhesse aquele nosso irmão e que ele intercedesse por nós junto do Pai de misericórdia. Para Padre Correia da Cunha, naqueles momentos, era muito importante ouvir o silêncio…

Escrevo este post, com uma grande dor e amargura na minha alma, com a partida para o Pai do meu querido e amigo sobrinho, António José Gregório Pina Calado (1961-2009), mas com uma grande certeza e convicção que ele já está junto de Deus.


Uma vasta multidão dos seus bons amigos congregou-se ontem na capela da ressurreição dos Olivais, para lhe prestar uma sentida homenagem e lhe dizer o seu último ‘’adeus’’. Havia motivo para todos sentirem a tristeza nos seus corações, mas apreciei a sobriedade, respeito e silêncio daquele imenso punhado de jovens que o quiseram acompanhar até à eternidade.

Ali, naquele local senti que Pe. Correia da Cunha aproveitaria para fazer um delicado elogio e não uma reprimenda. Pois tudo era muito diferente, havia respeito, silêncio e oração.

Não será esquecido nos nossos corações onde permanecerá com eterna gratidão. Ele será mais um amigo, que contamos no céu para nos ajudar atingir a felicidade plena, se possível nesta peregrinação terrestre.

O Tó Zé dorme hoje um sono sagrado… uma vez que os bons homens nunca morrem e junto de Santo António de Lisboa - nosso padroeiro, São José Operário - nosso protector e São Gregório - nosso modelo de virtudes, continuará a manter e a fortalecer em cada um de nós, que somos seus amigos, uma perene amizade.


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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA A ‘ALMA’ DAS COISAS...

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‘’ Seremos dignos… das maravilhas de Deus’’


Para Padre Correia da Cunha as coisas tinham ‘alma’.Quando adolescentes e arrebatadamente batíamos uma porta, éramos de imediato energicamente advertidos e levados a descobrir tudo o que aquela porta reflectia e o seu encantador processo de transmutação.
Padre Correia da Cunha começava assim:

- Um dia uma pequena semente foi lançada à terra. A semente absorveu a água do meio, aumentou de volume e consequentemente irrompeu a raiz na direcção do solo e no sentido oposto desenvolveu-se um pequeno caule folhoso. O sol e a chuva ajudaram a crescer aquele pequeno arbusto. Foram muitas primaveras e muitos invernos para que o pequeno caule se desenvolvesse e se tornasse numa grande e bela árvore.

Quando dava este ''sermão'', Padre Correia da Cunha lembrava um provérbio japonês que dizia: ‘’Um carvalho leva 300 anos a crescer, 300 anos a manter-se adulto e 300 anos a morrer’’.

Na natureza as árvores eram muito importantes, porque era no seu habitat que se abrigavam muitos seres. Davam frutos para alimentar os animais e produziam madeira de excelente qualidade.

Quando adultas, os homens procediam ao seu corte e com os seus troncos eram efectuadas excelentes tábuas de madeira, que com grande arte, dedicação, esforço e amor do trabalho, os carpinteiros transformavam em magníficas peças de arte. A esta porta, que é uma maravilha, foi-lhe atribuída a função de proteger esta sala. A própria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas… repare-se, veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a ‘alma’. O íntimo dessa ‘alma’, que é o ser porta, também lhe foi dado de fora, e constitui a sua personalidade…

- Vocês, umas bestas, com toda essa violência, querem destruir a adorável, amorosa e morosa obra do Criador e dos homens nossos irmãos!

Pergunto:

- Sereis dignos de utilizardes as coisas maravilhosas que Deus coloca ao vosso dispor?


Hoje, creio que não havia erro humano de Padre Correia da Cunha em atribuir ‘alma’ às coisas que chamamos inanimadas.
Padre Correia da Cunha aprendera desde muito jovem a ter o maior respeito e cuidado pelas coisas, que lhe eram colocadas ao seu serviço.

Quero recordar hoje a história que sempre acrescentava, para melhor apreendermos esta sua maravilhosa prelecção:

- Monsenhor Pereira dos Reis, reitor do meu seminário, mandava colocar maçanetas em madeira de balsa nas portas dos dormitórios. Este tipo de madeira leve apresentava uma fraca resistência. Não suportava e destruía-se perante uma força violenta por parte dos jovens seminaristas. Desta forma todos éramos educados a procederemos à abertura das portas com muita delicadeza e suavidade, caso contrário ficaríamos condenados a não poderemos entrar nessas dependências do seminário.

Como já referi Padre Correia da Cunha recordava com muito respeito e especiais saudades seu grande educador e pastor de jovens. Todos os seminaristas do seu tempo lhe reconheciam a sua maneira viva de formar inteligências. Padre Correia da Cunha procurava ser seu seguidor nesses domínios.




O EXAME DE CONSCIÊNCIA IV



Deveres dos estudantes

- Fui respeitador e obediente para com os meus mestres?
- Estudei com seriedade? Aproveitei bem o tempo?
- Estudei por amor ao saber ou unicamente para passar o ano?
- Critiquei, sem gravíssimas razões, os meus professores?
- Fomentei a indisciplina e a leviandade?
- Trabalhei com o desejo de realizar amanhã os planos de Deus, ou apenas pelo orgulho de saber, por vaidade?
- Fui preguiçoso?
- Troquei os livros de estudo, por livros maus ou mesmo só de distracção?
- Troquei o dever pelo cinema ou por outros espectáculos?
- Perante os colegas, tomei consciência das minhas responsabilidades e ajudei-os a tomar consciência das suas?
- Fomentei conversas indecentes ou irreverentes?
- Fui e desencaminhei algum colega para lugares suspeitos?
- Procurei fomentar a boa camaradagem e a união entre todos?


Deveres dos pais para com os filhos

- Procurei conhecer bem cada um dos meus filhos?
- Estimo-os a todos igualmente ou tenho preferências injustificáveis?
- Tenho tido o cuidado em os alimentar, vestir e calçar consoante o nível social da nossa família?
- Fui exagerado neste ponto, cultivando os meus caprichos?
- Obrigo-os com mão amiga mas firme a cumprirem os seus deveres e a cuidarem de suas coisas, ou tenho-os substituído nos seus trabalhos?
- Dou-lhes demasiadas facilidades ou demasiado dinheiro?
- Soube fazer respeitar em mim a autoridade de Deus?
- Admoestei-os ou castiguei-os procurando realmente o seu bem? Ou fi-lo por paixão, sem o necessário domínio dos meus nervos, apenas para mostrar a minha superioridade?
- Fui indulgente para com as suas criancices, ou demasiado severo?
- Para com as faltas graves de carácter ou de moral tive a necessária severidade ou fui demasiado indulgente?
- Procurei conquistar-lhes a confiança? Desabafam comigo? Se o não fazem, porque é?
- Tenho procurado educá-los na franqueza e na generosidade?
- Fomentei neles a dedicação à família e a caridade e amizade sã fora dela?
- Vigiei a influência de fora, da escola, das companhias, do emprego, etc.?
- Tenho-lhes dado sempre o bom exemplo quer na vida religiosa, quer na vida moral e social?
- Tenho dado toda a compreensão e colaboração á minha mulher (ou ao meu marido) diante deles?
- Desautorizei minha mulher (ou o meu marido)?
- Procurei educar e dirigir a liberdade e personalidade dos meus filhos, principalmente dos adolescentes? Mostrei ter confiança neles, embora vigiando discreta mas lealmente o uso dessa liberdade?
- Pu-los de sobreaviso no que respeita ás crises de idade? Preparei-os para elas com delicada franqueza?
- Embora discretamente vigiei e dirigi as suas leituras e escolhi os seus divertimentos e espectáculos?
- Preocupei-me com as suas companhias?
- Tenho orientado devidamente a sua personalidade e a sua vocação? A respeito desta, esqueci-me alguma vez de que os filhos que Deus me deu não vieram ao mundo para fazer a minha vontade, mas a de Deus?
- Tenho tido o devido cuidado na sua formação e na sua prática religiosa?
- Aos filhos casados, tenho-lhes respeitado a sua autonomia?
- Não me meto demasiadamente na sua vida?
- Tenho tido ciúmes dos genros ou das noras? Fiz ou disse alguma coisa que os pudesse dividir?
- Se sou avô, não tenho tido demasiada vaidade nos meus netos? Não os tenho estragado com mimos? Tenho procurado manter as cristãs tradições da família?


Deveres dos esposos

- Amo verdadeiramente a minha mulher (ou o meu marido)?
- Procuro na verdade o seu bem, a sua alegria?
- Procuro que haja entre nós uma verdadeira compreensão e conhecimento da nossa personalidade?
- Preocupo-me com os seus gostos, com os seus desejos?
- Preocupo-me a sério com a sua saúde e o seu bem-estar?
- Acredito sinceramente na sua dedicação por mim, mesmo quando se não traduz em manifestações sensíveis?
- Sobrepus o amor à minha mulher (ou ao meu marido) a qualquer outra afeição, mesmo ao amor pelos filhos?
- Evitei-lhe todos os trabalhos desnecessários?
- Interessei-me pela sua vida religiosa e pelos seus problemas, profissionais, sociais e domésticos?
- Fomentei e favoreci uma verdadeira comunhão espiritual entre nós?
- Fomentei os seus esforços na prática da virtude e mesmo dos seus trabalhos?
- Tenho rezado com ela (ou com ele) e por ela (ou por ele)?
- Fui egoísta, caprichoso, impaciente?
- Tenho sido gastador?
- Tenho cuidado do meu arranjo pessoal e no arranjo da casa?
- Tenho evitado todo o motivo de discórdia?
- Fui fiel à minha mulher (ou ao meu marido) por pensamentos palavras e obras?
- Impedi ou permiti fosse impedida a fecundidade conjugal?
- Aconselhei, consenti ou colaborei em abortos?
- Alimentei amizades perigosas?


Deveres do cidadão

- Procuro sinceramente o bem do meu país?
- Cumpri escrupulosamente os meus deveres de cidadão?
- Votei segundo os ditames da minha consciência, procurando o bem da Cristandade e do meu país?
- Paguei honradamente os impostos?
- Aceitei responsabilidades públicas, quando isso foi do interesse da minha Pátria?
- Procurei agir e julgar como cristão os negócios públicos?
- Favoreci por todos os meios ao meu alcance a união, a concórdia e a paz entre os meus concidadãos?
- Alimentei a má-língua e o boato?
- Procurei privilégios e favoritismos?
- Servi-me de empenhos ou da minha situação para obter benesses que não me competiam?
- Servi-me do suborno para alcançar quaisquer regalias?


Deveres dos operários ou empregados

- Realizei conscienciosamente o meu trabalho ou serviço? Ou fui preguiçoso?
- Colaborei gostosamente com os meus chefes?
- Fui desobediente?
- Realizei o meu trabalho com a consciência de ser um colaborador de Deus na obra da transformação do mundo?
- Fui bom camarada, solidário e caritativo para com os outros?
- Trabalhei por fomentar o bem-estar e a paz entre todos?

- Procurei ser prestável a todos?
- Disse mal dos meus camaradas ou caluniei-os junto dos chefes?
- Critiquei os meus camaradas ou murmurei deles?
- Dei a todos, e especialmente aos mais novos, o bom exemplo do cumprimento do dever e da dedicação ao trabalho?
- Tive conversas obscenas ou maliciosas?







Deveres dos militares

- Amo sinceramente a minha Pátria?
- Tenho procurado conhecer os meus deveres de seu defensor?
- Tenho honra em servi-la como guarda das fronteiras, da justiça e da paz dentro e fora delas?
- Tenho cumprido os regulamentos da vida militar?
- Respeito, estimo e obedeço aos meus superiores?
- Faço os exercícios militares, mesmo os mais enfadonhos, com consciência de que me preparo para melhor servir os interesses de toda a Nação?
- Esquivo-me aos serviços e aos exercícios com manhas e mentiras?
- Respeito e estimo todos os meus camaradas, mesmo os menos simpáticos, não só por ser cristão, mas até porque só a união e a colaboração entre todos é garantia da força de um exército?
- Procuro ser bom camarada e prestável a todos? Procuro compreendê-los, principalmente aos meus inferiores?
- Evito conversas de má-língua, ou, pelo contrário provoco-as e alimento-as?
- Tenho tido ou admitido conversas indecentes ou obscenas?
- Cometi excessos na comida ou na bebida?
- Li ou dei a ler livros ou quaisquer publicações contrárias à religião ou à moral? Divulguei imagens obscenas? Ou guardei-as?
- Foi paciente com os meus camaradas?
- Irritei-me com algum? Estou zangado ou de relações cortadas com algum deles?
- Recusei fazer as pazes com algum?
- Ofendi algum com palavras ou gestos?
- Andei à pancada com algum?
- Fui a casas suspeitas? Incitei outros a irem lá? Tenho o mau hábito de as frequentar? Fiz alguma coisa para acabar com esse mau hábito?
- Tirei alguma coisa a alguém?
- Denunciei ou caluniei algum camarada?
- Defendi a honra e a fama de todos?
- Dei a todos o bom exemplo na prática cristã, na vida moral, no serviço e na disciplina?


Deveres dos chefes e patrões


- Pago aos meus empregados ou operários o salário justo, legal e humano?
- Interesso-me pela sua vida particular e pela sua situação familiar?
- Procuro conhecer cada um deles e as suas dificuldades morais e materiais? Faço-o com a devida delicadeza e descrição?
- Interesso-me pela sua saúde e bem-estar dentro e fora do trabalho?
- Favoreço e facilito a sua vida religiosa?
- Respeito a sua autonomia e a sua personalidade?
- Favoreço a sua instrução profissional e a cultura em geral?
- Considero-os como meus irmãos?
- Falo-lhes com delicadeza e respeito? Ou mostro-me soberbo e distante? Ou tenho familiaridades condenáveis sobretudo com empregadas?
- Procuro conhecer os meus deveres de chefe ou patrão cristão? Conheço a doutrina social da Igreja?


Terceiro: DEVERES PARA COMIGO MESMO

- Tenho sido simples natural?
- Deixei-me levar pelo orgulho ou vaidade?
- Quis ter sempre razão?
- Aceitei as críticas e observações com bom espírito?
- Reconheci com humildade as minhas faltas ou defeitos?
- Fui hipócrita ou fingido?
- Menti por covardia, simulação ou vanglória?
- Fui desinteressado a respeito dos bens terrenos?
- Fui gastador, perdulário? Ou foi avarento?
- Foi generoso para com os pobres?
- Contribui, na medida das minhas posses, para as obras do culto, da caridade e do apostolado? Contribui para as missões?
- Respeitei o meu corpo cumpri os deveres? De higiene e tive os devidos cuidados com a minha saúde?
- Respeitei o meu sexo? Ou fiz actos impuros sozinho ou com pessoas de um ou outro sexo?
- Se tenho esse mau hábito, combati-o e fugi das ocasiões?
- Afastei com a devida prontidão maus pensamentos e maus desejos?
- Assisti a espectáculos perigosos ou imorais?
- Li publicações contrárias à religião ou à moral?
- Demorei a vista em imagens obscenas?
- Respeitei as raparigas e mulheres como gostaria fossem respeitadas as minhas irmãs, a minha mãe ou as minhas filhas?
- Fui provocante ou causa voluntária de tentação, no meu porte, vestuário, conversas ou atitudes?
- Mantive namoros perigosos ou levianos?
- Tenho procurado dominar meus nervos e sensibilidade?
- Excedi-me no vinho ou na comida ou no luxo?
- Fui glutão ou guloso? Se tenho essa tendência, combati-a?
- Fui covarde? Assumi sempre as responsabilidades que me cabiam?
- Tenho procurado organizar o meu trabalho de modo a dispor bem do meu tempo?
- Perdi tempo inutilmente? Foi preguiçoso?
- Organizei o meu horário e procuro cumpri-lo?
- Cumpro os meus deveres religiosos com devoção e amor?

É claro que se poderia esquadrinhar mais e mais… E haveria sempre matéria de arrependimento.

Mas fiquemos por aqui, Irmão!

Texto: Padre José Correia da Cunha

Fotos: Corpo de marinheiros


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