sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA, A FEIRA - II ACTO

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‘’ A vida é Sol de pouca duração! Haja dinheiro prá reinação!



O teatro era uma forma de se reflectir no palco os conteúdos da alma humana.

Padre Correia da Cunha com este auto pretendia interpelar cada um de nós, a ouvirmos o apelo de Deus que vem rogar um cantinho no nosso coração para nascer…

Padre Correia da Cunha sempre procurou transformar o teatro em profundas e verdadeiras doutrinações. Nesta sua obra imana uma sensação de naturalidade e simplicidade. Por isso afirmava que não tinha criado nada, apenas observava aquilo que o rodeava. Para conceber, inspirava-se no seu meio. Esta II CENA, a Feira, evoca a Feira da Ladra que atravessava constantemente a caminho do Hospital da Marinha, quando ali era Capelão Militar. Atravessar aquele espaço do Campo de Santa Clara repleto de feirantes, vendedores, compradores… era para ele um momento mágico de ânimo. Nenhuma barraca era igual, todas eram diferentes como as árvores num bosque. Um formigueiro de pessoas num lufa-lufa de compradores e vendedores onde o única coisa que contava era o dinheiro e negócio bem sucedido…








A FEIRA


Um Feirante:

Eh! Freguesia! Eh Freguesia! Aqui!
Aqui é tudo muito mais baroto!
Há fatos de Kaki
Dos grandes e pequenos;
E todos custam menos
Do que em qualquer lugar da nossa praça!


Eh! Lá! Freguês! Você não quer um fato?
Aproveite, Freguês, isto é de graça!
Ora, venha cá ver como isto é bom!
É chic! È de bom tom!
De corte americano!
E é do melhor pano!...

Também tenho de alpaca e de fazenda,
De tirilene e de óptimo algodão!...

Outro Feirante:

Olá, Menina, quer lençóis de renda?
Não perca a ocasião,
Não perca esta pechincha!...


Um garoto (Pedindo):

Minha Senhora, dá-me um tostãozinho?


Um feirante:


- Vai-te embora, rapaz, deixa a pedincha!

Outro Feirante:

Pst! Pst! Menina, venha cá!
Repare nesta saia
E veja esta blusa!
Belo conjunto para campo ou praia!
É o que agora se usa!...


Outro Feirante:

Quem quer comprar agulhas e dedais,
Pentes e alfinetes e outras coisas mais?
Agulhas de crochet,
Agulhas de tricot,
Filtros para café!...


Garoto (cantarolando)

Ai ló! Ai ló!
Ai ló! Ai ló! Ai ló!
Mamã compra um balão
Para a marcha à flambó!


Outro Feirante:

Eh! Meus Senhores! Venham cá ver isto!
Material assim nunca foi visto!
São brincos de senhora,
Que toda a moça adora!
Alfinetes, anéis e arrecadas,
E lindos pedantifs e correntes,
Berliques e berloques!


Um garoto (tenta mexer).

O Feirante:

- Ó mariola, vê, mas não lhe toques!

Outro feirante:

Abanicos pintados! Lindos leques!


(Pai e filha passam. Ela cobiça com o olhar. Ele diz:)

- Ó Filha, são todos pechisbeques!

Vendedor ambulante:

Escovas prós dentes!

Outro Vendedor:

Pós p’ra limpar metais!


Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões! Freguês, 3 pentes!

Outro Vendedor:

Esticadores pró colarinho!

Outro Vendedor:

Panelas, tachos, vidros e cristais!


Charlatão:


Senhoras e Senhores!
Não venho aqui para enganar ninguém,
Nem sequer p’ra vender mercadoria…
Venho p´ra vos livrar das vossas dores
E dar-vos alegria!
Venho trazer-vos um imenso bem!
Eis, Senhores, a maravilha ideal,
A descoberta mais sensacional,
Eis a piramidal,
Eis a fenomenal,
A grande panaceia,

Usada já no mundo inteiro e agora
Também em Portugal, em boa hora!
Boa p’ra tudo, até p’ra diarreia…

Na Rússia e na França,
Na Austrália e na Argentina
Na Pérsia, Alcabideche e até na China,
Em toda a parte onde o progresso avança
Veio revolucionar toda a ciência!
E agora é a grande esp’rança
Do povo português!
Ó Freguês! Ó Freguês!
Vossa Excelência,
Tome estes poses se quer ter saúde!
São bons, fenomenais e bem baratos
E cheios de virtude

Prós calos e prós ratos!
São infalíveis estes poses finos
Para as dores de barriga e de intestinos!

Quase nem se acredita…


E o preço? O preço? Oh! Em qualquer botica
Custava um dinheirão!
E aqui?... Custa cem escudos? – Não !
Cincoenta? … - Não! Quarenta? – Também não!
Vejam, Senhores, apenas dez mil réis!


Outro Feirante:

Tintas, vernizes, brochas e pincéis!
Aguarelas e quadros bons a óleo!


Outro Vendedor:

Três pentes dez tostões!

Outro Vendedor:

Amendoins, tremoços e pinhões!

Todos os Feirantes:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Um Feirante:

Amigos, dinheirinho já cá canta:
Notas, cheques e letras!

Todos:

O dinheirinho é que nos encanta
E tudo o mais… são tretas!

Um outro (cantarolando)

Haja dinheiro!
Olé! Olé!
Esse matreiro
É a nossa Fé!

Outro:

Haja dinheiro
Com abastança
Esse matreiro
É a nossa Esperança!

Outro:

Haja dinheiro,
El dá valor!
Esse matreiro
É o nosso Amor!


Outro:

El’ nos dá tudo,
Amigos meus!
O bom do escudo
É o nosso Deus!

Outro:

Honra, Virtude
Que significa?
… Tudo se ilude
Se a gente é rica!...

Todos:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Oh! Gente boa! Eh! Lá! Gente de bem!...
Não arranjais aí algum lugar,
Onde minha mulher possa ficar?...
Está prestes a ser Mãe!...

Todos:

A VIDA É SOL DE POUCA DURAÇÃO!
HAJA DINHEIRO PRÁ REINAÇÃO!

Voz de S. José:

Há tanto vento e frio aqui na estrada…
…Mas com franqueza, não se arranja nada?...
Nem sequer um cantinho para acolher?

O DEUS MENINO QUE NOS VAI NASCER?

? Não há lugar para o Salvador do Mundo?...

Um feirante:

Quem chora aí lamúrias e tristezas?

Outro:

Quem é? O que é que ele diz?

Outro ( que fora espreitar):

Sei lá!... É um infeliz!
Um maltês vagabundo!...
Anda pedindo esmola, com certeza!


Voz de S. José:

Oh! Boa gente amiga!...

Um feirante:

Muda lá de cantiga!...

Voz de S. José:

OH! Boa gente!...

Outro:

Diz que tem frio e fome!

Outro:

Que temos nós com isso!?
Mas que é que nos importa?
Diz-lhe que vá bater a outra porta!

Outro:

Ou então que aguente;
Que aguente, que é serviço!
Daqui não levam nada,
Maltrapilhos da estrada!...
O quê!? Irmos gastar
Dinheiro que estivemos a ganhar
Com gente dessa? – Não!

Voz de Maria:

Oh! Gente boa! Tenham compaixão!...
Vai nascer o MENINO…
Deixem-me aí ficar, por caridade…

Um feirante:

Rua! Gente sem tino,
Que isto aqui não é Maternidade!...

(Todos riem da piada blasfema. Gargalhadas. Vão saindo de cena. O órgão
Entretanto começa a introduzir o Coro dos Homens, fazendo variações sobre o tema Rorate).

Coro dos Homens:

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

1ª Quadra:

Perdida está a humanidade,
Tal qual o náufrago no mar.
Senhor, lançai-nos, por bondade,
A vossa Mão p’ra nos salvar!


Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

2ª Quadra:

O mundo vive em treva espessa,
Sem uma réstia de luz.
Cumpri, Senhor, vossa promessa:
Vinde até nós: - dai-nos JESUS!

Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

3ª Quadra:

Na Terra, só miséria habita;
Bem triste é nossa condição.
Ouvi, Senhor, a nossa alma aflita,
Dai-nos a Paz, a Salvação!


Refrão:

ABRAM-SE OS CÉUS! CHOVA A SALVAÇÃO!
EM GRAÇA, PAZ, LUZ E PERDÃO!

(Enquanto o Coro se vai extinguindo ao longe, arma-se o ARRAIAL: mesa de jogo, mesa de vinho e bailarico com a respectiva música.)


Continua...3º ACTO - ARRAIAL
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