terça-feira, 12 de novembro de 2013

PE. CORREIA DA CUNHA E O CASAL DE “BURLÕES”













PE. CORREIA DA CUNHA





QUALQUER PESSOA PODE SER

LUDIBRIADA EM SUA BOA-FÉ, NINGUEM

ESTÁ IMUNE.

MESMO QUEM DESEMPANHA FUNÇÕES BENÉFICAS AO SEU IRMÃO…

Havia quem gostasse de ficar só em casa, mas o Padre Correia da Cunha não era dessa opinião. Todas as noites eram agradáveis para sair para as fadistagens ou para jantares com os amigos, quando não havia compromissos com as actividades paroquiais.
Naquela noite, descíamos ambos a escadaria do Mosteiro de São Vicente de Fora, para irmos jantar num dos seus preferidos restaurantes da baixa pombalina. Esse espaço de influência beirã caracterizava-se pela qualidade e frescura dos produtos. Era um hino á arte da boa comida e bebida, confidenciava-me o Padre Correia da Cunha.
Eis quando fomos subitamente abordados por uma senhora, trajando roupas muitos simples e carregando ao colo uma criança de tenra idade num xaile, que a protegia do imenso frio, e outra que se lhe agarrava à sua saia. Disse numa voz singularmente educada:
- É o Senhor Prior?
O Padre Correia da Cunha olhou o relógio que marcava 20,30 horas. Porém, nunca deixava de atender os paroquianos que procurassem os seus cuidados. Era padre para estar ao serviço da comunidade e receber com disponibilidade total os seus paroquianos, num relacionamento de fraternidade humana. Não poderia de deixar de responder:
- Sou eu mesmo. Que deseja a estas horas com este imenso frio, esta minha santa senhora?
Em resposta ela apontou para o fundo do Largo de São Vicente, dizendo:
- Vem além, em passo de corrida, o meu marido e pretendemos falar com o Senhor Padre para marcarmos o Baptizado para este nosso menino.
- Ouve lá! Achas que são horas para vires pedir esse serviço? - Referiu o Padre Correia da Cunha com toda a paz de espírito baseado na humildade e na paciência cristã.
Fazia um frio de rachar e a ideia de estarmos ali parados não agradava nada ao Padre Correia da Cunha, para além de haver ali duas pobres criancinhas naquela gélida aragem.
Regressámos de novo ao Cartório Paroquial para que ali fosse prestada toda a atenção aquele modesto casal.
Segundo a descrição da senhora, o seu marido havia feito um imenso esforço, porque não dizer sacrifício, para poder estar ali aquela tardia hora. Trabalhava na Cruz Quebrada e só lhe foi possível largar o emprego pelas 19 horas.
Depois de todos estarmos sentados confortavelmente ao redor da imensa secretária do cartório, e do Padre Correia da Cunha já se ter munido de toda a documentação para o efeito, perguntou aos pais:
- Como se chama o menino? Agora, o nome do pai da mãe e morada.
A mãe respondeu de imediato a todas as questões e foi indicada a Rua da Voz do Operário, 21 – 2º Esq.


RUA VOZ DO OPERÁRIO - LISBOA


- Mas como diabo é possível morarem aqui tão próximo e eu não vos conhecer - referiu o Prior.
Volveu a mulher a esclarecer o reverendo:
- Vivemos aqui há pouco tempo.
- Está bem!
 Dirigindo-se ao homem perguntou-lhe:
- Qual a profissão do meu caro amigo?
- Sou radiotécnico.
- Que raio de profissão é essa? – Interrogou perplexo o Padre Correia da Cunha.
- Executo reparações em rádios e televisões.
Foi muito amável ter vindo aqui ao encontro do seu pároco - disse o Padre Correia da Cunha com uma voz de satisfação. Tenho aí um amplificador que faz parte da minha aparelhagem que deixou de funcionar. Será o meu amigo capaz de proceder à sua reparação?
Sem hesitação e de imediato proferiu:
- Com certeza! Essa é a minha principal profissão!




Fiquei na companhia do casal e das crianças no Cartório Paroquial, enquanto o Padre Correia da Cunha se dirigiu aos seus aposentos para ir buscar o amplificador da sua magnífica aparelhagem estereofónica de marca QUAD, que lhe havia sido oferecida por um amigo de grande estimação.

Não tardou cinco minutos a regressar.

- Cá está ele!

O radiotécnico observou atentamente o equipamento, referindo que aquele amplificador era de excepcional qualidade e que deveriam existir muito poucos no nosso país. Reconheceria ser no seu entender uma válvula queimada.

- O meu amigo radiotécnico é capaz de concertar esta preciosidade?

- Sem dúvida alguma, Sr. Prior!

Perante esta resposta, o Padre Correia da Cunha meteu a mão ao bolso do casaco. Para antecipar os custos do arranjo e para fazer face aos custos dos materiais necessários à reparação. Fazia questão de entregar em notas 30.000 escudos.

O homem disse que não era preciso pagar nada e devolveu-lhe o dinheiro. Mas o Padre Correia da Cunha num gesto de não concordância insistia em antecipar parte (?) do pagamento. A pessoa em questão parecia-lhe séria e merecedora da sua total confiança.

Tornou a insistir, rogando-lhe que aceitasse aquele dinheiro. O radiotécnico sentiu a necessidade de tranquiliza-lo a esse respeito dizendo:

- Quando lhe devolver o amplificador devidamente reparado, pagará na totalidade, pois como compreenderá não estou em condições de orçamentar os dispêndios dessa operação.






Finalmente o Padre Correia da Cunha fez sinal afirmativo com a cabeça e logo seguiram para o assunto que os levaria aquele Cartório Paroquial: o baptismo daquele menino.

Terminada a tarefa do preenchimento de todos aqueles formulários, o Padre Correia da Cunha referiu que os pais e padrinhos teriam de frequentar uma pequena acção de formação para o Baptismo. A primeira sessão teria já lugar no seguinte sábado, pelas 16 horas, na Sala do Conselho.

Terminados todos os esclarecimentos, o Padre Correia da Cunha encerrou o Cartório Paroquial. Por último, despediu- se do casal e o homem lá foi, transportando o amplificador de marca QUAD para reparação.

Mergulhado no turbilhão das muitas tarefas diárias que realizava na Comunidade Paroquial, Padre Correia da Cunha abstraiu o pensamento sobre aquela noite em que tinha passado para os zelos de um desconhecido, o seu amplificador QUAD.

Passados uns meses, o Padre Correia da Cunha, cismado e perplexo com a total ausência do casal de paroquianos, e dado que a data prevista para a realização do festivo baptizado já se encontrava mais que ultrapassada, convidou-me para irmos visitar a despretensiosa família e tomarmos conhecimento do que se teria passado para não terem comparecido na paróquia. Ele sentia que alguma coisa estava errada com aquela família que os impediria de realizarem o baptizado do menino.

Na sua companhia lá fomos calmamente, calcorreando a Rua Voz do Operário, na busca do número 21. Para nosso espanto, este número de polícia não existia. O semblante do Padre Correia da Cunha deixava-me aturdido. Era evidente que tinham mentido sobre o seu endereço. Era necessário tentar encontrar alguma pista que o casal “ burlão” tivesse deixado naquela rua e que pudesse ser utilizada para os desmascarar.

O Padre Correia da Cunha interrogou muitos paroquianos sobre o misterioso casal.  Tivemos pouca sorte em encontrar alguém que os conhecesse.

Já no regresso à Igreja Paroquial, num dos últimos prédios da rua, uma rapariga que estava à porta acompanhada de uma mulher, que deveria ser a mãe, deram-nos as últimas informações. Recordavam aquele casal pelas indicações fornecidas pelo reverendo.

- Eles foram-se embora, Sr. Prior!

- Sabem para onde?

- Nem qual diabo! - Respondeu a mulher mais velha.

- Apareceu aqui uma furgoneta e sumiram-se, sem me pagarem, o aluguer do quarto.

Sempre que o Padre Correia da Cunha, nos seus aposentos, olhava para aquela estrutura de talha dourada de um velho órgão setecentista, onde se encontravam os restantes componentes da sua magnífica aparelhagem estereofónica de marca QUAD; ficava silencioso, impressionado pela sua doce resignação, pois havia poupado 30.000 escudos. Não gostava de tocar naquele assunto, pois era doloroso ter perdido algo que lhe havia sido dado com tanta afeição pelo seu amigo do coração Rui Valentim de Carvalho (1931-2013).




RUI VALENTIM DE CARVALHO
Este empresário editor faleceu esta segunda-feira, 11 de Novembro de 2013. O Padre Correia da Cunha teve a sorte de o ter tido como amigo. Referia o reverendo que era para ele uma honra e uma distinção de ter conhecido este grande Senhor de cultura, possuidor de um bom gosto e de uma enorme sensibilidade artística e humana. Um perfeccionista que privou com imensos artistas e intelectuais, que atraía pela sua dedicação e carinho.


- Mas como diabo! Veio à Paroquia de São Vicente de Fora falsificando uma hipotética morada da Paróquia da Graça.

O mais espantoso é que este modesto casal de “burlões” praticou esta proeza, pela confiança que o Padre Correia da Cunha dispensou, pois nem se serviu do seu poder de insinuação e não foi aquele Cartório Paroquial para cometer qualquer irregularidade salvo a falsificação de morada.

Lembro que o Padre Correia da Cunha desejou ardentemente que pelo menos aquela inocente criança tenha recebido o Sacramento do Baptismo.

Para quem conheceu o Padre Correia da Cunha como eu, sabia que rapidamente superava estes acontecimentos como contingências terrenas. A vida para si só valia quando a colocava ao serviço dos outros.

Podiam as coisas sair-lhe ao contrário do que idealizava. Já nada o surpreendia nem lhe retirava a sua profunda crença no Homem. Era a força exclusiva da sua inteligência e vontade que lhe abriam sempre novas perspectivas, as dificuldades e adversidades eram ultrapassadas sem lhe retirarem a esperança.




“não poupava energias e roubava muito do tempo que seria de
repouso, talvez demasiado, mas um bom padre a vida é para se dar aos outros....”,

















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