quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

PE. CORREIA DA CUNHA E OS SEUS CORVOS MENSAGEIROS














CORVO VICENTE

“TINHA UM VERDADEIRO CULTO AOS CORVOS DA CIDADE…”




O pobre prior de São Vicente de Fora tomava a liberdade e o atrevimento de enviar aos jornais da época, uns textos da sua autoria, sobre o velho casarão que servia de sede à sua paróquia. Fazia-o por carolice e dever de ofício. 

Doía-lhe o coração ao ver o estado de abandono e desprezo a que estava votado todo aquele património, (igreja e mosteiro de São Vicente de Fora).

Nada melhor do que colocar os seus amigos corvos no desespero de terem de abandonar aqueles espaços em eminencia de ruína e voltarem a bater-se não já pelo corpo do Santo mas pelo seu desdito mosteiro.

O Padre Correia da Cunha acreditava que através dos bicos enérgicos dos corvos, poderia passar a sua mensagem, aos que se encontravam no poleiro do poder, com responsabilidades sobre tão degradante situação.

Toda a ajuda era Benvinda. Passo a transcrever um desses artigos que saiu da sua pena. Confiante o Padre Correia da Cunha que as negras asas dos corvos os poderiam levar aos destinatários certos. 


BAIRRO DE SÃO VICENTE DE FORA 

Não há quadra popular, cantiga bairrista, letra de fado alfacinha; não há poeta de maior ou menor vulto, que não fale de Lisboa como de uma rapariga caprichosa e ladina, meio mulher meio garota, apesar da sua provecta idade.

E a verdade é que, por mais fecunda que seja a inspiração não há volta a dar-lhe…

Quem quer que a conheça um pouco não a vê de outra maneira, nem arranja outra imagem, mesmo quando a trata por princesa, como o nosso épico. Ora a vê namoradeira, das suas sete colinas debruçada sobre o Tejo e fazendo-lhe negaças, ora a contempla toda vaidosa, revendo-se nos seus vestidos de Sol e de Luar; ora a observa trabalhadeira e airosa a saltitar de contente nas suas tamanquinhas de varina ou a caminhar graciosa nos seus vestidos de chita; ora lhe escuta a calhandrice nos velhos becos de Alfama; ora pasma embevecido, quando a vê, Chiado abaixo, com ares de Senhora Dona; ora deixa escapar uma lágrima, quando ela, cantando o fado, lhe confia os seus amores e queixumes…

Seria um nunca acabar se eu me fosse pôr agora a tecer variações à guitarra sobre este mágico tema:
- Lisboa Menina e moça…
Mas não é esse o fio destas mal regradas linhas.
Se falei desta Lisboa, Flor d’Altura, figurinha gentil e graciosa, por toda a gente cantada, foi para me sentir mais à vontade em apontar-lhe um defeito (que os tem, valha a verdade, pois não há bela sem senão).

Isto não quer dizer que não seja seu amigo. Mesmo que não fosse sócio do Grupo (e já o sou há uns bons vinte anos) não lhe teria menos amizade. Nado, baptizado e criado nesta nobre feiticeira sou seu amigo desde que me conheço e a conheço a ela.
E é por essa razão que me custa muito vê-la com um dos maiores defeitos que alguém pode ter: - a ingratidão.

E, quando esse pecado toca as raias do esquecimento e do desprezo, então é de fazer chorar as pedras da calçada e é tanto maior o desgosto quanto mais funda e sincera é a amizade que se tem a uma menina tão cantada.

Realmente faz pena, muita pena que esta menina e moça, tão bem prendada aliás, cometa tão grande maldade.

É o caso… 

Mas comecemos pelo princípio. Como toda a gente que se preza, a nossa cidade tem padrinhos, pois quem os não tem morre noivo, e Lisboa foi baptizada na Sé (como cantou o saudoso Norberto de Araújo) há oitocentos anos bem puxados. Levou-a à pia D. Afonso Henriques e foram seus padrinhos a Virgem Senhora Nossa, Rainha dos Mártires, cujo altar se levantou ali, na colina do Chiado, onde tinham seus arraiais os Cruzados anglo-saxões, e o Senhor São Vicente, diácono e mártir, santo muito da devoção do Rei Conquistador, que logo lhe pediu especial protecção para a menina dos seus olhos.


IGREJA SÃO VICENTE DE FORA - LISBOA 

Em honra deste Santo Padrinho, mandou D. Afonso Henriques levantar um grandioso templo, além, fora dos muros da cidade, precisamente no local onde seus bravos companheiros de armas tinham estado acampados e onde se armara a sua enfermaria, sob a invocação da Senhora da Conceição (outro nome da madrinha de certo, para que visse bem que os padrinhos da cidade são amigos inseparáveis).

Durante séculos, a menina e moça ia visitar assiduamente o Padrinho, falava-lhe com todo o respeito e devoção, escutava-lhe os evangélicos conselhos e procurava seguir-lhe os santos exemplos.

Aliás, foi ele quem lhe deu brasão de fidalga, ofertando-lhe as suas próprias armas; foi ele quem lhe ensinou as primeiras letras e as primeiras orações; foi ele quem sempre a protegeu, abençoou e por ela intercedeu.

Os Senhores Reis, durante muitos anos, se mostraram compadres amigos e devotos do Senhor São Vicente. Um deles, D. Manuel I, até mandou erguer em honra do Santo Diácono, uma linda torre lá para os lados de Belém, sítio de onde partiram os marinheiros da velha Alfama, nados e criados à sombra do mosteiro de São Vicente de Fora, partiram a descobrir mundos e a baptizar os gentios de todas as raças e cores, fazendo-os assim seus irmãos em Cristo (que é muito mais que irmãos de sangue…).

Assim o Senhor São Vicente, padrinho da capital, abraçava (e ainda hoje abraça apesar de tudo) a cidade de lés a lés e lançava a sua bênção a todo o Portugal d’aquém e d’além mar.

Quando foi do domínio de Castela, Lisboa não deixou abandonado o velho solar do seu padrinho. Pelo contrário, confiando no seu valimento e protecção, exigiu que o rei usurpador lhe edificasse outro templo, no estilo novo da época, pois o antigo, de velho estava em ruinas. E Filipe II de Espanha não teve outro remédio senão procurar agradar à cidade…
Depois da Restauração, em agradecimento ao padrinho da capital, D. João IV, continuou a obra encetada pelo rei estrangeiro; D. Luísa de Gusmão oferece para o novo solar do padroeiro ricos mármores de Vila Viçosa, alguns até com as suas armas; D. João V manda construir a sua preciosa e bela sacristia… Eu sei lá…

De um modo geral, todos os reis mostraram o seu reconhecimento e devoção ao Senhor São Vicente.

Não foi, pois, sem razão que se escolheu para Panteão da última Dinastia (que das outras não havia possibilidade de o fazer) o velho solar do padrinho da cidade.

Pois assim foi durante muito tempo, Mas infelizmente, para grande vergonha nossa, de há uns tempos a esta parte, desde mil oitocentos e tal para cá, esta Lisboa travessa e aperaltada voltou costas ao seu padrinho e ao velho mosteiro.


ALTAR MOR - S. VICENTE DE FORA 

Primeiro fez-se emproada Senhora Dona Libertina, de seguida enfiou o barrete frígio e desatou a fazer asneiras e a tratar mal a família do seu Santo Padrinho, como se tal barrete a obrigasse a ser malcriada e ingrata…Não descansou enquanto não deu ordem de despejo e pôs os tarecos na rua ao Padrinho e a toda a família.

Uma tristeza!...

O velho mosteiro, tão rico de tradição e história, esse majestoso templo de estilo neoclássico, sóbrio nas suas linhas, grandioso na sua traça arquitectónica, equilibrado nas suas proporções – esse belo solar do Senhor São Vicente foi tudo.

Foi caserna, foi Liceu, foi escola técnica, serviu de repartições públicas, para recreio de garotos, para espelunca de maltrapilhas, para esconderijo de ratoneiros… Foi vazadouro de lixos, de entulhos e até de detritos de toda a espécie…

E, é claro, em todas estas situações sofreu vexames, estragos e maus tratos que o deixaram em ruínas, mas em ruínas vergonhosas… Como se não bastassem os estragos feitos pelo terramoto de 1755 que lhe deitou abaixo a elegantíssima cúpula, substituída então provisoriamente (é claro) por uma outra de madeira que está a ameaçar ruir por meter água por todos os bordos…

Viram-se vasos sagrados, imagens, boas telas e belas peças de talha vendidas ao desbarato em hasta pública, quando não desviadas a ocultas…

Viram-se ricos paramentos e alfaias bordados a oiro e a prata arrastados pela lama; velhos pergaminhos preciosos vendidos a real o quilo ao ferro velho da esquina; viram-se estudantes (talvez com vocação para a cirurgia oftalmológica) a vazar os olhos das figuras dos azulejos setecentistas e outros a fazer pontaria aos vidros dos claustros, servindo-se das telhas da bela sacristia, o que deu como resultado a perda da belíssima tela que lhe serve de tecto.

Viu-se a incúria, o desmazelo, o esquecimento, o desprezo da cidade pelo solar do seu Santo Padrinho.




PE. CORREIA DA CUNHA 


Viu-se e infelizmente ainda se vê, apesar da boa vontade e canseiras do pobre prior, muitas coisa triste e feia…

E tudo isto faz pena, muita pena.

É certo que há uns vinte anos, o Solar do Senhor São Vicente foi entregue a quem de direito para nele se restaurar a devoção ao Santo Padroeiro.

Mas o que é certo é que a menina afilhada ainda se não compenetrou do dever de arrepiar caminho indo pedir perdão ao Padrinho e recomeçando uma amizade a que o Santo Diácono nunca faltou.

Talvez que a próxima terça-feira, dia 22 de Janeiro, fosse a ocasião mais adequada para a sempre menina e moça dar o primeiro passo no sentido da reconciliação.

É o dia consagrado ao Santo e ele sempre foi bom; sempre rezou por aqueles que o maltrataram, conforme ordena o preceito evangélico. Decerto está pronto a perdoar.

Não será de aproveitar a ocasião?

A Câmara Municipal, que tanto zelo tem mostrado pelo arranjo e aprumo da menina, cabe naturalmente o dever de chamar à ordem e de dar o exemplo da gratidão.

O solar do Padrinho da Cidade é hoje sede de uma freguesia pobríssima, sem vintém, nem sequer para as limpezas.

Não tem bancos, não tem luz, não tem uma instalação de som capaz de fazer ouvir a voz do pároco.
A cúpula (como ficou dito) está a meter água e a sacristia também. Os pináculos do templo presos com gatos de ferro, em vez de bronze, ameaçam escaqueirar a Feira da Ladra e Deus queira não matem ninguém, um dia. O mesmo acontece com os sinos de uma torre (porque a outra não nos tem). Poucas são as janelas que não sejam apenas buracos rectangulares… 

Bem sei que todas estas misérias estão a ser objecto de estudos por parte da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, que ainda o ano passado arranjou os telhados. Mas as reparações são de necessidade urgente, não só pelas desgraças que podem causar e pelas perdas irreparáveis, mas até para se acabar com a vergonha das vergonhas que é o triste espectáculo patente a todos especialmente aos turistas e às pessoas cultas que nos visitam.

Mas, ainda que aquela Direcção Geral consiga meter mãos à obra, e levá-la a bom termo, como todos esperamos, cabe, no entanto à Câmara, que usa no seu selo as armas do Santo Padrinho da Cidade, a honra de ajudar a manter acesa a lâmpada votiva em nome da menina afilhada que tão distintamente representa.

Não seria, pois, possível, Senhor General e Exmºs. Vereadores conceder uma verbazita anual para as lâmpadas do templo e dos claustros do Mosteiro de São Vicente de Fora, que não é apenas a igreja de uma pobríssima paróquia mas também o solar do Padrinho da Cidade e um dos seus maiores monumentos?

Oxalá que este grasnar dos corvos, porque sincero e sem malícia, comova o coração da menina Lisboa e das entidades que representam e nas suas responsabilidades.

E creiam, estimados leitores, que este nosso grasnar é tanto mais sincero quanto é certo que soa como um autêntico acto de contrição da nossa parte. 

É que até nós, sim, até nós, os corvos considerados como fidelíssimos companheiros e guardas de São Vicente, abandonamos envergonhados os seus claustros e viemos, comodistas, para o poleiro moderno, todo mármore, do Diário de Noticias… Sim, até nós… com vergonha das tristes figuras que tem feito a nossa querida menina, deixamos São Vicente, mas, na esperança de a chamarmos à razão, daqui lançamos este apelo.

E ou não é verdade que Lisboa também tem os seus defeitos?

Se numa Senhora se pudesse bater, dava vontade de lhe pregar um bom par de açoites…

Mas, como pode agora arrepiar caminho, não percamos a paciência, aguardemos. 


 
Padre José Correia da Cunha
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