MISSÃO DA IGREJA: CRISTIANIZAR
TUDO
O QUE NASCE PAGÃO, A COMEÇAR POR
NÓS…
(PADRE CORREIA DA CUNHA)
Este blogue tem um duplo objectivo: por um lado homenagear esse grande vulto da Igreja de Lisboa que foi capelão da Armada (1943-1961) e pároco de São Vicente de Fora (1960-1977); por outro lado, trazer à luz do dia escritos que exprimam a sua faceta de homem que dominava de forma superior a Liturgia.
Como sabemos o Movimento Litúrgico, em Portugal, pode datar-se do I Congresso Litúrgico, realizado no ano de 1926.
O Mosteiro de Singeverga e o Seminário Maior dos Olivais tiveram grande importância no Movimento Litúrgico. Houve grandes liturgistas nesse movimento que hoje aqui quero recordar: Dr. António Ribeiro de Vasconcelos, Monsenhor Pereira dos Reis, Monsenhor Freitas Barros, Monsenhor Coelho Ferreira, D. António Coelho, Cónego António Gonçalves, Padre Manuel Pinto e Padre José Correia da Cunha.
Nos anos 60, viveu-se o enorme entusiasmo da reforma litúrgica. O Padre Correia da Cunha não podia de deixar de promover e fomentar celebrações que tivessem uma participação activa e consciente dos cristãos. Esta sua ousadia retirou-o da sua tranquilidade de devotado sacerdote ao seu ministério. Sem o desejar, viu-se envolvido em campanhas promovidas pelos jornais católicos da época que não se mostravam livres para percorrer novos caminhos da Liturgia.
Já aqui dei conta de uma carta enviada ao jornal “Novidades” com os esclarecimentos do prior de São Vicente de Fora, sobre um artiguelho titulado: Religião e Liturgia «Á viola»?
O Padre Correia da Cunha entendeu como grosseiros, vindos desses artiguelhos, os ataques à sua pessoa e aos amigos que então colaboravam consigo.
Transcrevo hoje um esclarecimento enviado ao Jornal “A VOZ”: um texto bem revelador de um homem que foi como poucos, um sábio, com quem só raros podiam combater. Deu exemplos convincentes, de grande superioridade de alma até ao último dia da sua vida, e nunca esquecia no seu coração, os seus amores inconfessáveis, os discípulos queridos e as instituições que lealmente serviu.
Talvez a propósito de umas considerações, aliás pertinentíssimas e cheias de oportunidade, do Senhor Bispo de Verdun acerca das formas populares do culto à Santíssima Virgem, publicou o nosso jornal católico, em 10 de Julho passado, um comentário que, sem dúvida alguma, foram mal interpretados por muitos dos seus leitores e até por outros diários da Capital.
Com efeito, muitas pessoas amigas ou simplesmente conhecidas, de cujo idoneidade mental e formação moral me não é lícito duvidar, se me dirigiram, por escrito, interpretando os referidos comentários como depreciativos e difamatórios de alusões a uma celebração realizada na igreja de São Vicente de Fora de cuja paroquialidade sou responsável. Aliás dessas muitas informações pessoais, uma semana depois da publicação dos ditos comentários, o Jornal “A VOZ” transcreveu-os inserindo-os num contexto de outras transcrições e dando-lhes um título que só vem confirmar o difamatório e mau sentido de tal interpretação e dar-lhes maior publicidade ainda.
Como estou certo que o nosso jornal católico não quererá, de forma alguma, deixar na mente dos seus leitores o mais leve indício de qualquer equívoco e, muito menos ainda, que as suas páginas dêem pasto a deturpações da verdade e a estas interpretações difamatórias, espero que não haja qualquer dificuldade na publicação deste esclarecimento.
Na tal experiência realizada na igreja de São Vicente de Fora, não foi celebrado o Santo Sacrifício da Missa. Realizou-se apenas uma Celebração da Palavra, seguida da distribuição da Sagrada Comunhão, dentro das condições canónicas e do maior recolhimento e devoção.
Diga-se em abono da verdade que “NOVIDADES” não se referiram expressamente ao Santo Sacrifício, mas a interpretação geral de que ainda hoje muito boa gente se faz eco (talvez porque quem conta um conto acrescenta lhe um ponto) é de que houve uma “ MISSA YÉ-YÉ…
Também ao contrário da interpretação corrente,
a referida celebração pôde realizar-se apenas porque tudo se fez “ segundo o parecer e com o consentimento
de autoridade territorial com patente”, e porque foram tomadas as
providências necessárias para que decorresse com o mais profundo espírito de
religiosidade e com a mais sincera devoção, como, aliás, se procura que
aconteça sempre em tudo quanto se realiza neste templo sob a minha
responsabilidade.
A
referida celebração, além de ter sido devidamente autorizada, realizou-se sob a
inteira responsabilidade de pessoas:
–
Que são bem conhecidas nos meios católicos lisboetas pela sua profunda e
sincera devoção à Santíssima Virgem, cujo culto tem promovido e fomentado com
certo zelo em qualquer das suas formas (populares ou não), tais como,
Peregrinações ao Santuário de Fátima, Procissões, Meses de Maria e do Rosário,
Novenas, Para-Liturgias…e até compondo versos (de pé quebrado- é certo) que têm
sido cantados com geral agrado por muitos coros, a começar pelo dos Olivais.
–
Que não tem tendência alguma (arriscada ou não) para o angelismo. Andam, por
enquanto com os pés bem firmes no chão, embora desejem que os seus corações e
os dos outros se ergam bem alto para poderem cantar com os Anjos, Arcanjos,
Tronos, Potestades, Dominações, Querubins e Serafins o hino da Glória a Deus e
cânticos de louvor à Rainha dos Anjos;
– Que embora apoiem com entusiasmo a adopção de música dos nossos tempos nas celebrações religiosas, mesmo litúrgicas (como aliás sempre a Igreja o fez), não são inteiramente desprovidos de um razoável critério nem do necessário bom senso nessas adopções, de que, parece já terem dado suficientes provas.
– Que embora apoiem com entusiasmo a adopção de música dos nossos tempos nas celebrações religiosas, mesmo litúrgicas (como aliás sempre a Igreja o fez), não são inteiramente desprovidos de um razoável critério nem do necessário bom senso nessas adopções, de que, parece já terem dado suficientes provas.
A
música executada na tal Celebração, embora moderna e acompanhada por
instrumentos modernos, não pode, com rigor, classificar-se de “YÉ –YÉ”. Era
música de “ESPIRITUAIS NEGROS”, portanto de profunda inspiração religiosa, e o
texto, uma tradução livre, talvez sem grande valor literário, mas absolutamente
ortodoxas.
4.
Habituados,
aliás, a ouvir e a cantar, nos nossos templos, todo o género de música (desde a
de óperas e opereta à de valsa e de marchas mais ou menos marciais), - não
parece haver razões suficientes para “ a prior” se vilipendiarem cânticos cujo
valor musical e literário, se lhes não é superior, é pelo menos igual.
5. Se
foi, é e será sempre missão da Igreja baptizar ou cristianizar tudo o que nasce
pagão, a começar por nós; se sempre a Igreja adoptou e, ultimamente, no
Concilio até recomendou instantemente o uso de música popular nos templos, -
parece não haver motivos para negar hoje essa sacralização a muita da música
moderna, como ontem os não houve para a negar à quase totalidade do reportório musical
que o povo canta nos nossos templos, música essa toda ela de origem
estrangeira, muitas vezes importada às claras com o respectivo pagamento dos
emolumentos aduaneiros, outras, passadas aos direitos na “valias” de uma
inspiração trivial. E quanto à letra…Santo Deus!
6.
Quanto
ao carácter popular e valor religioso da grande maioria dos cânticos ainda hoje
executados nos nossos templos, nem sei como foi possível haver más
interpretações. Mas houve. É certo que muitos deles, mas mesmo muitos, estão
infelizmente popularizados, mas não são nada populares. E não é bom que se
permitem confusões…Ou não será verdade que se pode enxertar letra pagã em todos
os hinos por aí cantados, tais como o “ Queremos Deus” (made in France) ou o
“Abram Alas”(Spanicus me facit)? Que quase todos os cânticos para a Sagrada
Comunhão ou de louvor à Santíssima Virgem, ainda hoje cantados, poderiam ter
uma letra lamechamente romântica? É que alguns deles, como “ No Céu a irei Ver”
poderiam até ritmar uma valsa? Onde a espiritualidade ou valor religioso dessa
música tão popularizada, mas nada popular? …Talvez e apenas na intenção
sinceramente devota de quem a canta. Se assim é, porque não fazer o mesmo com
alguma da música actual?
É já lugar-comum dizer-se que São Paulo, se vivesse nos nossos dias, seria
jornalista. Eu estou em crer que o Apóstolo dos Gentios, que tinha uma grande
alma de poeta e só desejava ganhar a todos para Cristo, não hesitaria em
publicar versos ou poemas na Secção Literária do seu jornal, para que a
juventude de hoje pudesse cantar com todo o entusiasmo o seu “ Gaudete in
Domino semper”.
O Concilio, tantas vezes invocado e tantas vezes mal interpretado, também não
hesitou em correr conscientemente dois grandes riscos no que se refere à música
religiosa, apenas para que o Povo de Deus pudesse passar a participar activa,
viva e conscientemente nas celebrações dos Divinos Mistérios, a saber:
–
O risco de ver geral e praticamente postas de parte as maravilhas do Canto
Gregoriano e da Polifonia Clássica tradicional que não podem servir as línguas
vernáculas;
–
O risco de ver angústia das diversas Cristandades que terão de andar à procura
(sabe Deus por quanto tempo ainda) de novas formas musicais dignas das
Celebrações Litúrgicas. (… se até no que respeita às versões oficiais em
vernáculo, parece que ninguém ainda está satisfeito…)
Mal
interpretada foi ainda a expressão “teatralismo exótico” dos comentários em
causa, pois foi por muita gente aplicada com sentido depreciativo à Celebração
de São Vicente de Fora. É que nem sequer se pensou que toda e qualquer celebração
religiosa (Litúrgica ou não) tem e há-de ter sempre o seu quê de “teatralismo
exótico” tanto na “mise-enscene”, como nos gestos, nas atitudes, na dicção, no
vestuário e até… na música. Mais: quanto esta – a música – é actual e a letra,
compreendida, então é que (sem nunca deixar de o ser inteiramente) passa a ser
menos exótico o seu teatralismo.
Parece
que esta verdade é evidente; mas o certo é que muitos tomaram precisamente essa
frase num sentido depreciativo…
A
numerosa assembleia – das mais diversas idades, posições sociais, grau de
cultura e formação religiosa – que enchia o vasto templo, viveram aquela
Celebração com espiritual agrado. Alguns jornais laicos deram espontânea
notícia elogiosa.
Alguns dos pontos acima expostos serão
susceptíveis de discussões mais ou menos académicas. Outros há, porém, que
envolvem a reputação absolutamente ortodoxa dos promotores responsáveis da
Celebração de São Vicente de Fora. E esses não podiam passar sem estes
esclarecimentos.
A
título meramente elucidativo e no sincero desejo de contribuir positivamente
para a solução do gravíssimo problema da música popular religiosa em Portugal e
talvez também no Brasil ou onde quer que se fale a língua portuguesa, informo o
seguinte:
-
Existem ainda muitos cânticos de autêntica inspiração popular, de valor musical
e religioso extraordinário.
-
Esses cânticos estão em sério risco de se perderem, pois não se cantam já há
muitos anos. Passaram de moda…
-
Esse manancial de autêntica música popular religiosa tem sido posta de parte,
infelizmente há muito tempo.
-
O seu registo e inventariação andam, há mais de trinta anos, a fazê-los o Prof.
Artur Santos pessoa profundamente cristã, de fé esclarecida e artista de rara
competência e delicadíssima sensibilidade.
Pena
é que o seu árduo e difícil trabalho não seja devidamente conhecido, nem tenha
o devido apreço e a ajuda de quem de direito.
Pe José Correia da Cunha
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