quarta-feira, 30 de novembro de 2011

PE. CORREIA DA CUNHA E O FADO PATRIMÓNIO

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“NA BOCA DE UM MARINHEIRO... QUE, ESTANDO TRISTE CANTAVA...’





Parecia impossível, mas era verdade. O Padre Correia da Cunha andava ensonado todas as manhãs, porque se perdia pela atmosfera nocturna dos becos e vielas de Alfama, onde se deixava aportar numa qualquer casa típica de fados.


O Padre Correia da Cunha entregava-se incondicionalmente a estes sonhos agradáveis, pois tinha uma alma de artista e gostava de ouvir e cantar o fado castiço, tão português.

Da sua paróquia de São Vicente de Fora, a qualquer recanto de Alfama era a distância de um tiro, descendo a encosta, em cascata de casario, por entre becos e ruelas mal iluminadas. Não faltava a passagem pela igreja do seu santo protector, nas lides do fado: Santo Estêvão.




Era nesses ambientes quase irreais, na companhia dos amigos de farras, que o fado tanto lhe falava aos seus profundos sentimentos. Ali saboreava os excelentes petiscos regados com uma boa pinga e escutava excepcionais elencos de fadistas com reportórios vernáculos, que lhe enchiam o coração de grande beleza e emoções. Para ele era importantíssimo que as vozes fossem acompanhadas por exímios artistas da guitarra e da viola.



O Padre Correia da Cunha costumava afirmar que era esta Lisboa, sincera, pura, original, verdadeira, que não copiava o estrangeiro, pois não precisava; que lhe fazia entender o que era belo e sublime.




O Padre Correia da Cunha podia ter optado por uma paróquia da moderna e elegante Lisboa, das madames “blasées”, que chupavam nas palhinhas dos batidos, nas elegantes e snobes casas de chá. Por desejo próprio veio para a Feira da Ladra, bairro do povo simples, do trabalho rude, das fadigas, no atavismo das saudades e na realidade das árduas preocupações.




Com longa vida feita sobre as salsas ondas do mar, o fado tocava-o muito. O Padre Correia da Cunha confessava-se um profundo amante do bom fado. Neste humilde bairro, podia sonhar mais com o amor do que com o dinheiro, aqui sabia-se cantar o fado e ele não trocava o pátio pobre de lajedo primitivo escuro, medieval, pelos mais luxuosos tapetes das ricas residências da moderna Lisboa.





A sua alma de marinheiro poeta só se podia sentir bem no local donde partiram as caravelas para as conquistas do novo mundo. Alfama era a Lisboa das marinhagens, das varinas cheirando a sol e mar, das gaivotas sobrevoando o seu enamorado Tejo, dos becos e das ruelas, das quimeras de amor.

No coração do Padre Correia da Cunha havia uma Lisboa de ciúmes ferozes, de brigas que acabavam em beijos, do fado das lágrimas, dos risos, das raivas e dos perdões…

O Padre Correia da Cunha era um alfacinha de gema, saudosista, cioso dos encantos da sua eterna e amada cidade, que esquecia as mágoas e tinha a salutar filosofia do optimismo, uma alma aberta ao encanto da tradição, vivendo a sua canção que ele garantia que o snobismo ou a indiferença não conseguiriam nunca derrotar.


Jamais o Padre Correia da Cunha terá profetizado o que o futuro reservava para a sua canção nacional. Um novo mundo abre as portas para receber o fado, pela riqueza da sua história, cultura e tesouro esplendoroso da alma lusitana, no pedestal do Património da Humanidade.


Seria certamente um dia muito feliz para o Padre Correia da Cunha a proclamação do Fado a Património Mundial, pois seria entendido por si como o reconhecimento desta herança popular, imortalizada pelas celestiais vozes de muitas fadistas que deram a conhecer ao mundo o nome de Portugal.


O Padre Correia da Cunha era um homem de superior inteligência. Sempre o ouvi referir que o fado fazia parte da genuína cultura do povo português, exprimindo os sentimentos e manifestações, em que saudade, solidão, melancolia são palavras que ligavam na perfeição. Ele também foi um daqueles que o cantaram com imensa paixão pela madrugada fora, na companhia dos amigos, pelos escondidos recantos da sua querida Alfama.



Foi com o Padre Correia da Cunha, nas longas noitadas passadas na sua residência paroquial, que muitos jovens de São Vicente de Fora aprenderam a venerar e apreciar a grande e “divinal” Amália Rodrigues. Para o Padre Correia da Cunha a voz do fado, em Amália, era tão bela que lhe lembrava a harmonia dos anjos serenos e abençoados, ainda que tristes.


Ao erguermos as taças brindando ao reconhecimento internacional do FADO, sentimos que o Padre Correia da Cunha, onde quer que se encontre, estará também a festejar com um aberto e feliz sorriso!

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