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“ LISBOA COM O SEU ENCANTO, AFINAL, É UMA SAUDADE…”
Aí vem os Santos Populares! Para o Padre Correia da Cunha, o mês de Junho era o da Lisboa galanteadora, das noites de claras luas, em que apetecia deitar só ao romper da manhã, depois de encher os olhos de luar, comer umas boas sardinhadas e beber uns bons copos pelos tradicionais arraiais da sua linda Lisboa. Um bom vinho era para ele “o néctar dos Deuses” que lhe enchia o coração de poesia. As noites de Santos Populares faziam cantar o povo, criando uma Lisboa nova, cheia de frescor, de graça, alegria e de um fraternal espírito, para além de matar a sede de amor das almas apaixonadas.
Quem não se recorda de nos bairros antigos os putos armarem tronos modestos de sabor ingénuo, onde Santo António sorria, entre jarrinhas de flores e de castiçais baratos com velas de estearina…
Também essa devoção aos Santos Populares estava bem viva no coração do Padre Correia da Cunha. Para incentivar as homenagens litúrgicas dos festejos populares, cedia imagens, candelabros e outros artefactos, a título de empréstimo, para as várias colectividades do bairro, para que estas manifestações de gosto estético e arte popular não se perdessem no génio alfacinha.
Não concebia estes festejos populares sem o arraial da Paróquia de São Vicente de Fora, na cerca fernandina. O espaço era adornado de flâmulas, balões, grinaldas, fogueiras alegres e crepitantes, canções que andavam nas almas, marchas alegres, braços que se enleiam em danças populares, e beijos que andavam nas bocas dos jovens entre sorrisos e palavras murmuradas baixinho; saias que rodavam e giravam como grandes papoilas a abrir; odores de rosmaninho e manjericos, alcachofras queimadas a reflorir para as certezas do amor.
Tudo envolvia aquela Lisboa tradicionalista e pitoresca, que deixava a sua aristocracia, elegante e aprumada, para ser todo um grande coração bairrista. A raça de marinheiro do Padre Correia da Cunha e homem de fé fazia que proporcionasse esta imensa alegria aos seus paroquianos e enchesse os seus corações de fantasia durante as longas noites de Junho. Bastavam os restantes meses para que as suas almas fossem encharcadas de um quotidiano de dura vida.
Lisboa, como hoje, vinha toda para a rua, as almas saltam nos olhos, na alegria pura que enchia toda a cidade. Os manjericos e os cravos vermelhos de papel espreitavam em cada janela dos típicos bairros.
Santo António - que habitara os espaços de São Vicente de Fora, à semelhança do Padre Correia da Cunha, era o jovem bonitão, casamenteiro. Uma ingénua crença popular transformou-o num impertinente santinho que partia as bilhas às moças namoradeiras…
São João - aquele que surge com o cordeirinho branco ao colo, de face tranquila e a quem o povo atribuiu o milagre das alcachofras refloridas…
São Pedro - o santo venerado de longas barbas brancas, porteiro do Céu, trazendo as grandes chaves à cintura e que fecha o ciclo das festas populares.
Três símbolos, três ídolos da cidade de Lisboa que continuam a ser celebrados, a cada ano, pelas ruas e ruelas de Alfama, Madragoa, Mouraria, Graça, Castelo e São Vicente de Fora… Como referia o Padre Correia da Cunha, por todos os bairros tradicionalistas, onde um coração alfacinha houvesse, como o seu, palpitava o sonho e a poesia.
São os Santos Populares que oferecem o perfume eterno desta Lisboa de Junho. O Padre Correia da Cunha amava esta linda Lisboa que trazia, ardentemente no coração, infiltrada no seu sangue de grande alfacinha.
Da proa da sua casa, no Mosteiro de São Vicente de Fora, a sua alma ficava suspensa no olhar sobre o convés dos becos e vielas dos antigos bairros engalanados, perdendo-se na graça das colinas irisadas pelo sol claro, o mais puro e luminoso do Mundo.
O Padre Correia da Cunha era um frequentador das tascas e casas de fado, pois era ali que sentia a vida do povo e onde os corações se confundiam e irmanavam num bairrismo secular e ardente. São estas tradições que vêm de longe, enchendo de estranha nostalgia os becos da nossa cidade antiga; uma nostalgia que não é triste, antes suavemente bela.
Como o Padre Correia da Cunha lembrava, Jesus tinha uma especial preferência pelos pecadores. E era verdade. São da sua lavra estas palavras: “Não são os que gozam de boa saúde que precisam de médico, mas os doentes”. As rixas de amor com a sua intervenção acabavam sempre num beijo e num perdão, e onde a dolência das velhas e poéticas gritarias, são a lembrança viva da mourama sonhadora, que dançava a cantar ao som das guitarras sobre a luz prateada do nosso puro luar.
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