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COMEMORAÇÃO VICENTINA DOS ’AMIGOS DE LISBOA’’
Conferência, na sede, pelo PADRE CORREIA DA CUNHA, no dia do Padroeiro da Cidade em 1954
I PARTE
Não sei porquê; confesso que não atino bem com as razões que levaram a ilustre Junta Directiva desta Casa a incumbir-me de falar a VV. Exªs do glorioso Padroeiro de Lisboa.
Ao certo, ao certo, não sei. Mas quer-me cá parecer que, se aqui estou na berlinda, é apenas por estes três motivos: por ser alfacinha de gema, por morar no Mosteiro de S. Vicente de Fora, e por ser Padre Capelão da Marinha; que outra razões mais não enxergo…
Pelo contrário, reconheço, sem falsa modéstia, que me falta o saber e me não sobeja nica de tempo para estudar com profundeza o tema, aliás tão interessante, que nos reuniu aqui. Outro qualquer faria melhor.
No entanto, os motivos apontados são de si suficientes para me imporem o dever de aceitar tão honroso encargo. Ou não será dever de todo o alfacinha que se preza, como verdadeiro amigo de Lisboa, conhecer um pouco, ao menos da bela história e das lindas tradições lisboetas? E não cumpre ao hóspede da Claustra Vicentina venerar com público e devoto reconhecimento o Santo seu Anfitrião e Orago?
E que dizer do Padre que não tivesse a mais pequena notícia de uma das maiores figuras Martirológio, para mais Capelão da Marinha que já sulcou as águas do Mar Oceano no mesmo sentido e rumo que seguiu a Nave do invicto Mártir S. Vicente?
E eis porque aqui estou, pondo á prova a paciência de VV.Exªs,!
Prometo, porém, desde já, fazer todo o possível por que tal provação lhes mereça a palma do Martírio nem as honras dos Altares.
E daí…nada se sabe! Verdade seja que a minha fala não pretende ser conferência (ao contrário do que foi anunciado), mas simplesmente palestra, conversa fiada, que eu desejaria fosse cavaqueira amena. Porém, ao fim e ao cabo, VV. Exªas é que dirão de sua justiça!
E, desde então, sempre me habituei a vê-la no mistério da sua dupla personalidade: senhoril no porte, coroada de uma auréola de luz e cor verdadeiramente únicas no mundo, e, ao mesmo tempo, simples e modesta, atavios ou enfeites pretensiosos, nimbada apenas da beleza natural que Deus lhe deu. Dir-se-ia uma Rainha de Sonho que por entre as outras passa, esbelta e cheia de encanto, com a graça de uma varina.
E esta imagem faz-me lembrar aquela velha lenda que, embora conhecida, não resisto á tentação de contar.
Era uma vez…
(E a lenda reporta-nos á velha Idade Média, quando os Senhores Cavaleiros se davam á folgança de torneios e justas em honor de suas Damas por quem suspiravam coitas de amor e a quem ofertavam gestas valorosas).
E foi o caso que, de certa feita, todos os Príncipes do Sacro Império se reuniram em grande e original torneio, não para se determinar qual o mais valente e destro, no manejo das armas, ou mais inspirado e hábil nas cantigas de amor, mas para se decidir qual de entre eles era o mais nobre.
E aconteceu que, num cortejo esplendoroso, montados em cavalos ricamente ajaezados, esses cavaleiros lá foram desfilando pelo vasto terreiro, seguidos do numeroso séquito de seus vassalos. Faziam alarde vaidoso de suas riquezas e troféus e ostentavam com orgulho os pergaminhos da sua linhagem. Até que chegou o momento de se apresentar um cavaleiro ainda novo, príncipe também de sangue e de alma, embora pobre, que não levava luxos nem grandezas, mas se fizera acompanhar por todos os seus leais súbditos. Chegado que foi ao centro do terreiro, acenou á multidão para que se calasse um pouco.
E mal se fez silêncio, disse:
- ‘’ Senhores! De todos é sabido que eu pouco tenho ou nada; mas considero-me o mais rico e nobre dos Príncipes da Cristandade, por ter um Paço em cada casa dos meus vassalos e em cada peito deles, um coração amigo! ‘‘
E reza a lenda que todos o aclamaram vencedor.
Pois quer-me parecer que a história, com pequenas alterações, se pode aplicar a um imaginário torneio entre as cidades do mundo. E estou certo de quem, depois de terem passado as grandes capitais vaidosas de suas grandezas, quando chegasse Lisboa, na sua Nau Catrineta, sorrindo como Ela sabe,
Toda a gente com certeza,
Desde os Chins as Esquimós,
Diria a uma só voz:
- Tu és do mundo a Princesa!
De resto, deixem dizer-lhes muito aqui á paridade (não venham acusar-me de plagiário…), esta ideia não é nova; já foi cantada em oitava rima pelo nosso Épico:
E tu, nobre Lisboa, que no Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo nome foi Dardânia, acesa,
Tu, a quem obedece o Mar profundo…
(C. III – E. 57)
Mas, se, nem no tempo de Camões, tal cortejo se realizou, bem será que se não faça nunca, para que apareça por aí, através da imprensa, da rádio ou da televisão, a infausta notícia de que a nossa Lisboa vai partir para Hollywood, contratada por algum magnate do cinema…
Pois (como ia dizendo), eu gosto de Lisboa; sou deveras seu Amigo.
Quantas vezes me não pondo a olhar para Ela e, absorto, a não contemplo, dali, do morro de Almada! Como se mostra bela e formosa, quando, pela tardinha, toda inundada d sol, se revê embevecida nas águas especulares do seu Tejo!
Que maravilha!
Quem ainda a não viu dali, defronte, não conhece bem a sua beleza, e não sabe o que perde…
O rio, antes de se fazer ao mar, por despedida, atira-lhe furtivos beijos (não vá o Sol ter ciúmes) e oferta-lhe, como presente para o enxoval, alvas rendas de bilros que as suas Tágides tecem ao som da melopeia murmura das ondas. E Ela, que lhe percebe o gesto, mostra-se ao Sol sorridente e mimalha (para que Ele não fique amuado), e desce á pressa dos seus paços do Castelo, embrenha-se no labirinto de Alfama, benze-se á porta da Sé, encomenda-se a Santo António e vai, num pulo, ao Terreiro do Paço estender-lhe os braços gentis. Depois, tiquetaque pela calçada, sobe a Santa Catarina para o ver mais a preceito e lhe dizer: ‘’ Aqui estou. Eu não te deixo! ‘‘
E com o Rio tem de andar, também Ela acompanha, sempre correndo ligeira, quanto as forças lho permitem, até quase sair da barra. E vendo que mais não pode, na Torre de S.Vicente, ali adiante a Belém, se fica triste e saudosa, de lenço branco na mão, acenando, acenando…até ao pôr-do-sol.
Depois volta, ao lusco –fusco,
ainda mais bela e formosa, porque a luz do seu olhar tem um véu feito de pranto; e fica por momentos a rezar á Senhora de Belém pelo seu noivo marinheiro – o Tejo.
Padre José Correia da Cunha
Continua
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‘’PORQUE GOSTO DE LISBOA!’’
O melhor modo de fazer justiça à vida e obra do Padre Correia da Cunha é dar a conhecer o seu pensamento e a sua obra através dos textos que nos deixou.
Com o apoio do Grupo Amigos de Lisboa é nos hoje possível transcrever esta Conferência proferida em 1954, na sede deste grupo olisiponense, no dia de São Vicente, Padroeiro de Lisboa. Este texto reúne contributos notáveis para o conhecimento da vida e obra do Padre José Correia da Cunha, na sua relação com a sua a sua cidade de coração e dos elevados conhecimentos no domínio da liturgia santoral.
Padre Correia da Cunha foi um dos mais atractivos mestres do pensamento, que até hoje tive a honra de ter podido dialogar e conviver. Será muito difícil no panorama português encontrar muitas pessoas que revelem um contributo intelectual e uma acção pedagógica que lhes permitam perpetuar a sua memória. Pe Correia da Cunha, pela sua subtileza, objectividade e frontalidade de linguagem, ficou indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de o conhecer e partilhar os seus profundos conhecimentos nas muitas artes que dominava profundamente.
Espero com a transcrição desta sua conferência, após cinquenta cinco anos da sua realização, seja uma homenagem adequada e avive no espírito daqueles que conviveram com Padre Correia da Cunha e que dele receberam formação, orientação, conselho e sobretudo testemunho de vida, o reconhecimento sincero do brilhante homem de pensamento e reflexão que não poderá ser esquecido.
Com o apoio do Grupo Amigos de Lisboa é nos hoje possível transcrever esta Conferência proferida em 1954, na sede deste grupo olisiponense, no dia de São Vicente, Padroeiro de Lisboa. Este texto reúne contributos notáveis para o conhecimento da vida e obra do Padre José Correia da Cunha, na sua relação com a sua a sua cidade de coração e dos elevados conhecimentos no domínio da liturgia santoral.
Padre Correia da Cunha foi um dos mais atractivos mestres do pensamento, que até hoje tive a honra de ter podido dialogar e conviver. Será muito difícil no panorama português encontrar muitas pessoas que revelem um contributo intelectual e uma acção pedagógica que lhes permitam perpetuar a sua memória. Pe Correia da Cunha, pela sua subtileza, objectividade e frontalidade de linguagem, ficou indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de o conhecer e partilhar os seus profundos conhecimentos nas muitas artes que dominava profundamente.
Espero com a transcrição desta sua conferência, após cinquenta cinco anos da sua realização, seja uma homenagem adequada e avive no espírito daqueles que conviveram com Padre Correia da Cunha e que dele receberam formação, orientação, conselho e sobretudo testemunho de vida, o reconhecimento sincero do brilhante homem de pensamento e reflexão que não poderá ser esquecido.
COMEMORAÇÃO VICENTINA DOS ’AMIGOS DE LISBOA’’
Conferência, na sede, pelo PADRE CORREIA DA CUNHA, no dia do Padroeiro da Cidade em 1954
I PARTE
Não sei porquê; confesso que não atino bem com as razões que levaram a ilustre Junta Directiva desta Casa a incumbir-me de falar a VV. Exªs do glorioso Padroeiro de Lisboa.
Ao certo, ao certo, não sei. Mas quer-me cá parecer que, se aqui estou na berlinda, é apenas por estes três motivos: por ser alfacinha de gema, por morar no Mosteiro de S. Vicente de Fora, e por ser Padre Capelão da Marinha; que outra razões mais não enxergo…
Pelo contrário, reconheço, sem falsa modéstia, que me falta o saber e me não sobeja nica de tempo para estudar com profundeza o tema, aliás tão interessante, que nos reuniu aqui. Outro qualquer faria melhor.
No entanto, os motivos apontados são de si suficientes para me imporem o dever de aceitar tão honroso encargo. Ou não será dever de todo o alfacinha que se preza, como verdadeiro amigo de Lisboa, conhecer um pouco, ao menos da bela história e das lindas tradições lisboetas? E não cumpre ao hóspede da Claustra Vicentina venerar com público e devoto reconhecimento o Santo seu Anfitrião e Orago?
E que dizer do Padre que não tivesse a mais pequena notícia de uma das maiores figuras Martirológio, para mais Capelão da Marinha que já sulcou as águas do Mar Oceano no mesmo sentido e rumo que seguiu a Nave do invicto Mártir S. Vicente?
E eis porque aqui estou, pondo á prova a paciência de VV.Exªs,!
Prometo, porém, desde já, fazer todo o possível por que tal provação lhes mereça a palma do Martírio nem as honras dos Altares.
E daí…nada se sabe! Verdade seja que a minha fala não pretende ser conferência (ao contrário do que foi anunciado), mas simplesmente palestra, conversa fiada, que eu desejaria fosse cavaqueira amena. Porém, ao fim e ao cabo, VV. Exªas é que dirão de sua justiça!
PORQUE GOSTO DE LISBOA
Nado, baptizado e criado nesta urbe feiticeira, sou Amigo de Lisboa desde que me conheço.
Cedo, bem cedo, me deixei enfeitiçar pelo sortilégio desta cidade.
Cedo, bem cedo, me deixei enfeitiçar pelo sortilégio desta cidade.
E, desde então, sempre me habituei a vê-la no mistério da sua dupla personalidade: senhoril no porte, coroada de uma auréola de luz e cor verdadeiramente únicas no mundo, e, ao mesmo tempo, simples e modesta, atavios ou enfeites pretensiosos, nimbada apenas da beleza natural que Deus lhe deu. Dir-se-ia uma Rainha de Sonho que por entre as outras passa, esbelta e cheia de encanto, com a graça de uma varina.
E esta imagem faz-me lembrar aquela velha lenda que, embora conhecida, não resisto á tentação de contar.
Era uma vez…
(E a lenda reporta-nos á velha Idade Média, quando os Senhores Cavaleiros se davam á folgança de torneios e justas em honor de suas Damas por quem suspiravam coitas de amor e a quem ofertavam gestas valorosas).
E foi o caso que, de certa feita, todos os Príncipes do Sacro Império se reuniram em grande e original torneio, não para se determinar qual o mais valente e destro, no manejo das armas, ou mais inspirado e hábil nas cantigas de amor, mas para se decidir qual de entre eles era o mais nobre.
E aconteceu que, num cortejo esplendoroso, montados em cavalos ricamente ajaezados, esses cavaleiros lá foram desfilando pelo vasto terreiro, seguidos do numeroso séquito de seus vassalos. Faziam alarde vaidoso de suas riquezas e troféus e ostentavam com orgulho os pergaminhos da sua linhagem. Até que chegou o momento de se apresentar um cavaleiro ainda novo, príncipe também de sangue e de alma, embora pobre, que não levava luxos nem grandezas, mas se fizera acompanhar por todos os seus leais súbditos. Chegado que foi ao centro do terreiro, acenou á multidão para que se calasse um pouco.
E mal se fez silêncio, disse:
- ‘’ Senhores! De todos é sabido que eu pouco tenho ou nada; mas considero-me o mais rico e nobre dos Príncipes da Cristandade, por ter um Paço em cada casa dos meus vassalos e em cada peito deles, um coração amigo! ‘‘
E reza a lenda que todos o aclamaram vencedor.
Pois quer-me parecer que a história, com pequenas alterações, se pode aplicar a um imaginário torneio entre as cidades do mundo. E estou certo de quem, depois de terem passado as grandes capitais vaidosas de suas grandezas, quando chegasse Lisboa, na sua Nau Catrineta, sorrindo como Ela sabe,
Toda a gente com certeza,
Desde os Chins as Esquimós,
Diria a uma só voz:
- Tu és do mundo a Princesa!
De resto, deixem dizer-lhes muito aqui á paridade (não venham acusar-me de plagiário…), esta ideia não é nova; já foi cantada em oitava rima pelo nosso Épico:
E tu, nobre Lisboa, que no Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo nome foi Dardânia, acesa,
Tu, a quem obedece o Mar profundo…
(C. III – E. 57)
Mas, se, nem no tempo de Camões, tal cortejo se realizou, bem será que se não faça nunca, para que apareça por aí, através da imprensa, da rádio ou da televisão, a infausta notícia de que a nossa Lisboa vai partir para Hollywood, contratada por algum magnate do cinema…
Pois (como ia dizendo), eu gosto de Lisboa; sou deveras seu Amigo.
Quantas vezes me não pondo a olhar para Ela e, absorto, a não contemplo, dali, do morro de Almada! Como se mostra bela e formosa, quando, pela tardinha, toda inundada d sol, se revê embevecida nas águas especulares do seu Tejo!
Que maravilha!
Quem ainda a não viu dali, defronte, não conhece bem a sua beleza, e não sabe o que perde…
O rio, antes de se fazer ao mar, por despedida, atira-lhe furtivos beijos (não vá o Sol ter ciúmes) e oferta-lhe, como presente para o enxoval, alvas rendas de bilros que as suas Tágides tecem ao som da melopeia murmura das ondas. E Ela, que lhe percebe o gesto, mostra-se ao Sol sorridente e mimalha (para que Ele não fique amuado), e desce á pressa dos seus paços do Castelo, embrenha-se no labirinto de Alfama, benze-se á porta da Sé, encomenda-se a Santo António e vai, num pulo, ao Terreiro do Paço estender-lhe os braços gentis. Depois, tiquetaque pela calçada, sobe a Santa Catarina para o ver mais a preceito e lhe dizer: ‘’ Aqui estou. Eu não te deixo! ‘‘
E com o Rio tem de andar, também Ela acompanha, sempre correndo ligeira, quanto as forças lho permitem, até quase sair da barra. E vendo que mais não pode, na Torre de S.Vicente, ali adiante a Belém, se fica triste e saudosa, de lenço branco na mão, acenando, acenando…até ao pôr-do-sol.
Depois volta, ao lusco –fusco,
ainda mais bela e formosa, porque a luz do seu olhar tem um véu feito de pranto; e fica por momentos a rezar á Senhora de Belém pelo seu noivo marinheiro – o Tejo.
Padre José Correia da Cunha
Continua
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