sexta-feira, 31 de julho de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E OS RITOS

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‘’…guardei a fé. Só me resta a coroa de glória’’






Padre Correia da Cunha, com já referi, era um grande liturgista. Não podemos esquecer que foi um dedicado discípulo de Mons. Pereira dos Reis, reitor do Seminário de Cristo Rei – Olivais, que o marcaria para sempre nessa temática. Era assinante de todas as publicações, nacionais e estrangeiras, sobre liturgia pastoral, desenvolvendo pesquisas na perspectiva de as introduzir na Comunidade Paroquial e com elas formar todos os seus membros.

Todos os sinais litúrgicos nos eram explicados minuciosamente por Padre Correia da Cunha, pois tinha a convicção que não poderíamos aderir aquilo que não conhecíamos. Padre Correia da Cunha referia que vivíamos numa sociedade, onde éramos permanentemente bombardeados com símbolos e sinais de todas as espécies … A Liturgia Cristã socorria-se de sinais e praxes para nos ajudar a compreender e a vivermos as verdades mais profundas.

Lembro-me da pedagogia utilizada pelo Pe. Correia da Cunha nos intróitos que sempre fazia antes de proceder à administração de um sinal, associando-o sempre à vida real. Perguntando: para que serve a água? Para que serve o sal? Par que serve a luz? Para que servem os óleos? Para que serve o pão?

Estas reflexões muito simples permitiam que se apreendesse, de uma forma intuitiva, a essência dos sinais e a razões que levaram a igreja adoptá-los nos ritos litúrgicos.

Lembro-me de lhe ter ouvido dizer: ’’Se entrasse numa igreja, pela primeira vez, sem ter um mínimo de conhecimento do acto litúrgico, as imagens que ficariam na sua mente seriam: Um palhaço faz-tudo, vestido com veste compridas até aos pés e um enorme grupo de espectadores tristes com comportamentos tipo robot. Quando um se levanta, todos se levantam e não se entende o que dizem…’’

Os actos litúrgicos para Padre Correia da Cunha tinham que ser participativos. As celebrações só eram válidas se compreendidas por todos os presentes. A vivência da igreja estava muito ligada à maneira com celebra e se exprime através dos ritos litúrgicos.







COMEMORAÇÃO VICENTINA DOS ’AMIGOS DE LISBOA’’



Conferência, na sede, pelo PADRE CORREIA DA CUNHA, no dia do Padroeiro da Cidade em 1954




VII PARTE





Não será novidade para ninguém a afirmação de que a Liturgia católica, no que diz respeito ao cerimonial de que se revestem todos os seus actos, não é obra definitivamente estabelecida por Cristo ou rapidamente formada pelos Apóstolos. É trabalho de muitas gerações cristãs, que se vem fixando desde os tempos apostólicos e enriquecendo através dos séculos com a experiência da Igreja, sob a inspiração divina.

O mistério ou sacramento, por outras palavras, o núcleo da acção sagrada é de instituição divina de Cristo; mas o seu quadro ritual o conjunto de cerimónias que emolduram essa acção central, é obra da Cristandade, sob moção do Espírito Santo.


Não é de estranhar, pois, que principalmente nos primeiros tempos, e até ainda hoje, tenham existido e existam ritos diferentes para a celebração dos mesmos mistérios.

Os três primeiros séculos foram tempos de vida atribulada em que os mistérios e os mártires do Cristianismo eram celebrados a ocultas. Não podiam estabelecer-se formas rígidas de culto. No entanto, quer no Oriente, quer no Ocidente, surgem normas litúrgicas mais ou menos generalizadas, que rapidamente se divulgam pelos dois impérios.

No ocidente, a Liturgia de Roma, como era natural, serve de modelo e norma a todas as igrejas. Dada, porém a relativa independência de acção e, sobretudo, o período de formação do cerimonial, aparecem diversas formas litúrgicas com características locais e próprias, embora radicadas no Rito Romano e formando com ele uma família. As mais notáveis são a Liturgia Galicana, a Liturgia Milanesa ou Ambrosiana, e a Liturgia Romano-Visigótica, mais conhecida, ainda que impropriamente, pelos nomes de «Mosarábica».

Só mais tarde S. Gregório Magno esboça e depois Carlos Magno consegue levar a cabo a tentativa de unificação das liturgias ocidentais. Os esforços então enviados e posteriormente seguidos, após muitos trabalhos e lutas, alcançam, embora não por completo, o almejado fim. Alguns ritos persistem, impostos pelas tradições que tinham, pela beleza das suas formas e pela riqueza do seu simbolismo.


Deles, os principais são o Milanês e o Romano-Visigótico; este ainda vivo em Toledo e nalgumas igrejas de Espanha, e aquele em Milão e em diversas igrejas circunvizinhas.



Não pretendi fazer aqui um resumo histórico da evolução dos Ritos, mas julguei dever tentar este esboço e explicação para que VV. Exªas. Pudessem mais facilmente avaliar da profunda e geral devoção que os nossos maiores consagraram oficialmente ao nosso Santo Diácono.

Até ao século VII, portanto durante três séculos, após o martírio de S. Vicente, a Liturgia Romana prestou ao invicto mártir, a mesma consagração que aos grandes Diáconos Santo Estêvão e S. Lourenço. MAIS AINDA: os textos da Missa arranjados expressamente para a celebração litúrgica de S. Vicente, foram depois servir para a de qualquer outro santo mártir. Mas, nos finais daquele século, chega a Roma o corpo de um santo monge presa, Anastácio de sua graça, que, em Jerusalém, no ano 528, na perseguição de Cósroés, deu o sangue pela Fé de Cristo. Justo era que a memória deste mártir, também glorioso, fosse evocada pela Cristandade. E então a MISSA DE SÃO VICENTE, que até essa altura era a Missa Laetábitur, foi substituída pela missa Intret in conspectu tuo, própria para comemorar vários mártires.

Com a divulgação do Rito Romano todo o Ocidente vai adoptando também esta Missa, excepção feita para as igrejas em que o culto do Mártir de Saragoça era mais fervoroso ou que tinham por Padroeiro o Santo Diácono. O mesmo sucedeu nalgumas Ordens Religiosas, como a Dominicana, que na celebração do Santo, ainda hoje conservam a missa Loetabitur.

Exceptuam-se ainda é claro, os lugares onde substituíram os antigos ritos, como Milanesa e a Mosarábica.


Nalgumas outras Igrejas ainda, embora tenham adoptado o Rito de Roma, por motivos de especial devoção, o Santo Diácono é celebrado com uma missa própria, com textos expressamente escolhidos.

Sirva de exemplo, a católica Espanha, Pátria do Santo, que lhe consagra uma Missa, de textos tão sabiamente arranjados e tão inspiradamente escolhidos, que não resisto á tentação de citar.

Nos cânticos dessa Missa, fala-se constantemente no grande combate em que, com a graça de Deus, o glorioso Mártir justificou seu nome. Eis alguns exemplos:

Intróito - « O Senhor deparou-lhe um grande combate, mas para que ele saísse vencedor. Acompanhou-o no sofrimento e na prisão não o abandonou».

O Gradual, cantando a sua heroicidade na luta, cita as palavras de S. Paulo:

«Combati o bom combate; terminei a minha carreira; guardei a fé. Só me resta a coroa de glória».

E no verso é ainda o Santo quem refere o sentido do seu martírio:

«Cristo será engrandecido no meu corpo, tanto na vida como na morte!»

Nos outros cânticos – verso aleluiático, trato e ofertório – fala-se do triunfo do Santo que, por ser vencedor, será revestido da veste branca da imortalidade. O trecho da Epístola é aquele passo do Apocalipse em S. João, numa visão grandiosa, descreve Deus a recompensar o vencedor e que em latim começa os diversos períodos com as palavras VINCENTI dabo – onde se vê alusão clara ao nome do nosso Mártir.

Tais são os formosos textos que hoje se rezam em toda a Espanha do Rito Romano.

Nos Ritos Milanês e Mosaárabe, aliás muito semelhante não só porque no fundo conservam muitas das primitivas formas do velho Rito de Roma, mas ainda porque entre as duas Igrejas houve intenso intercâmbio cultural, social e litúrgico, tem S. Vicente uma consagração muito especial.

Não me foi possível consultar os textos litúrgicos desses Ritos, embora os tivesse pedido a livrarias da especialidade. Todavia, o hino de Prudêncio (sec. V) e as sequências de Adão de S. Vítor (sec. XI), transcritos por D. Guéranger no seu célebre Anné Liturgique, dar-nos-ão já uma ideia da pompa e da beleza com que neles é celebrado o invicto Mártir.

Lamenta aquele sábio e santo monge não poder dar no seu livro toda a bela poesia de Prudêncio. Que não hei-de dizer eu que, apesar de toda a boa vontade, só posso oferecer a VV. Exªs. a tradução de algumas das suas quadras? Faço-o, porém, e em verso (embora de pé – quebrado), para que VV. Exªs. possam fazer ao menos uma pálida ideia do suave perfume de tão deliciosos néctar:

Vicente, Mártir Santo,
Este dia é radioso,
Pois nele ganhaste a palma
De um martírio glorioso.

Porque em tal dia venceste
O carrasco e o tirano,
Cristo te leva aos Céus,
Vitorioso e ufano.

Hoje ao lado dos Anjos
Tua veste resplandece,
Foi lavada no teu sangue,
Por isso, bela aparece.

Levita da tribo sacra,
Ministro do Santo Altar,
És coluna da Igreja
Que ajudaste a triunfar.

Em vida triunfador,
Na morte vitorioso,
Não te deixaste dobrar
Pelo tirano orgulhoso.

Ó Mártir, por tuas dores,
Escuta os devotos teus:
- Sê para nós pecadores
Advogado junto a Deus.



E aqui têm VV. Exas. Uma pobre amostra do culto de S.Vicente nos cultos mosarábicos e ambrosiano. Quem quiser apreciar as belas sequências de Adão de S.Vitor facilmente as encontrará no citado livro de D. Guéranger.

E entre nós (que é o que mais interessa), que se passa no que respeita ao culto litúrgico de São Vicente?

Após a reconquista cristã da nossa terra – autêntica cruzada contra a moirama – o Rito Romano, pois já haviam realizado as tentativas de unificação dos Ritos, a que atrás aludi.

É, porém, natural que os cristãos, espalhados pelos territórios ocupados pelos Árabes praticassem a Liturgia Romano-Visigótica, tanto mais que o IV Concílio de Toledo, no ano 633, impusera aquele Rito a todas as Espanhas, salvo á região bracarense, que conservava o velho Rito de Roma, ainda não reformado.

De resto, devido á falta de contacto com a capital do Cristianismo, o Rito Romano-Visigótico teria conseguido manter-se vivo. Pelo que podemos concluir que os Mosárabes mantinham o Culto Romano-Visigótico.


A cruzada de reconquista ia, no entanto, impondo o Rito Romano já unificado.

No que se refere, porém, a S. Vicente, é de crer que o Rito em que o Santo era celebrado, continuasse a ser o Romano-Visigótico, que, certamente, se manteve até 1775, pelo menos.

A quem tenha mais tempo e paciência deixo o cuidado de procurar documentação decisiva sobre esta tese. Creio, porém, poder afirmar-se com toda a segurança que, pelo menos, na Capela de S. Vicente da Sé Patriarcal de Lisboa, o invicto Padroeiro da Capital era celebrado neste Rito Romano-Visigótico ou Mosarábico.


Texto de Padre José Correia da Cunha


Continua...




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