“ A NOSSA IRMÃ PEDRA CHOROU… “
Entre os papéis já amarelecidos
dos apontamentos do Padre Correia da Cunha, encontrei um trecho de uma
conferência sua sobre: A Lição da Pedra.
A nossa Irmã Pedra, forte,
admirável e calma segue o caminho que Deus lhe traçou… Quem teve o privilégio e
o prazer de o ouvir, não sabe que mais admirar neste clérigo se o talento, o
saber, a finura de espírito ou a delicadeza dos seus sentimentos.
Este trecho sobre a Irmã Pedra
que li e reli carinhosamente, enleva-nos e atrai-nos porque tudo nos parece
iluminado pela bondade da sua alma, pela profundidade da sua fé, pela sua
crença em tudo o que há de mais sublime, elevado e nobre. O Padre Correia da
Cunha era visceralmente crente e sentia uma sincera afeição e veneração pela
natureza.
O Padre Correia da Cunha com a
sua imensa alma de poeta tinha uma imaginação voltada para as visualidades
exuberantes da Mãe Natureza. Para além dos poetas só os santos sentem a alma
elevar-se às regiões da pura espiritualidade ou a contemplações místicas…
Este texto transportou-me para
uma magnânima figura de primeira grandeza com registos de ouro da humanidade:
São Francisco de Assis - o amoroso contemplativo da Natureza, o doce amigo dos
humildes… Em Deus via o princípio e o fim de todas as coisas.
O Padre Correia da Cunha tinha o
dom dos grandes escritores e poetas e um apuradíssimo talento de admirador das
artes e da música que o seu refinado ouvido o fazia apreciar, sentir e
interpretar toda a boa música enquanto sabia também ser um orador correcto. Ele
escrevia e ouvia com o melhor da sua alma.

Devo-lhe o pouco que sou, com a
satisfação de ter sido seu discípulo. Cabe-me o gosto de cumprir um dever moral
para com todos os que conviveram com ele e foram também seus discípulos na
Comunidade Paroquial de São Vicente de Fora. Tenha-se em conta a quantidade de
gente notável que o conheceu e permanentemente me têm manifestado o seu desejo
para que continue esta homenagem á memória deste grande mestre de vida, que
tendo sido padre, também foi marinheiro e poeta.
Agradecendo tão dedicada atenção
de muitos bons amigos, vou por esta forma cumprindo o dever que a amizade pelo
Padre Correia da Cunha me impõe.
É vastíssimo o rol de
apontamentos que deixou inéditos, anotados pela sua própria mão, que o seu
sobrinho, Eng.º Aníbal Cunha me fez chegar e que representam para mim um imenso
desafio. Aos poucos serão por mim, carinhosamente publicados.
Padre Correia da Cunha by Desiree Fabela |
A LIÇÃO DA PEDRA
(Conferencia pelo
Padre Correia da Cunha)
Como aqueles «pregadores de
estola rica» que, para falarem de Santa Eulália, remontavam obrigatoriamente às
origens do mundo, o melhor, aos primórdios da criação, também me parece
conveniente, senão necessário, começar pelo pecado de nossos primeiros pais – única
coisa verdadeiramente original que o homem jamais realizou. Nem se julgue que é
ocioso e inútil retroceder tanto, que, para se conhecer um pouco o mistério e a
grandeza da obra de Deus, bom é que meditemos na miséria e baixeza da obra do
homem.
Nenhum de nós ignora o mal que o
pecado original foi para a humanidade. Nem tampouco desconhece a extensão das
suas trágicas consequências. Há, no entanto, um aspecto que me parece não ser
suficientemente considerado: - a repercussão da desgraça em toda a natureza
material.
Na verdade pelo pecado, o homem
não só se precipitou na profundeza do abismo - de profundis clamavi – mas
arrastou também na sua queda a criação inteira. É que o homem foi criado por
Deus como a coroa da sua obra, flor de toda a natureza e sua cúpula, ou, se
quisermos, como a obra-prima - imagem e semelhança divina que o Senhor colocava
sobre o pedestal maravilhoso da criação. E como toda a obra de arte tem uma
finalidade, o homem fora criado e tão altamente colocado, para ser o intérprete
consciente e livre da nudez das coisas, para glorificar por si e por elas o
Divino Artista. Mas pecando o homem renuncia voluntariamente a esta sua inicial
missão, e, precipitando-se no abismo, deixa sem voz toda a natureza, priva todo
o cosmos do acesso ao trono de Deus. No fundo, o que aconteceu com o pecado
original foi simplesmente esta trágica e enorme desgraça: o ruir da ponte que
ligava as margens de dois mundos! O de Deus e o da sua criação.
Se as comparações nos podem
ajudar a fazer melhor ideia do descalabro, direi ainda que foi como se à
roseira se tirasse a possibilidade de desabrochar em rosa, obrigando-a a ser
unicamente raiz envergonhada nas entranhas da terra, tronco contorcido de
dores, ramos e folhas torturados de espinhos e nada mais.
Mas de que serve a roseira senão
para florir em rosas e exalar perfume?
Será, porventura, inteiramente
roseira, se não puder desabrochar? Lembremo-nos da palavra de Jesus a respeito
da figueira estéril e teremos uma imagem da verdade do mistério.
Pois, como o pecado original,
todas as criaturas ficaram sem a voz que por elas louvava o Criador; todas
ficaram sem as mãos que as erguiam aos céus; todas ficaram sem a cabeça que por
elas amava a Deus. Tudo veio a perder: O homem precipitando-se no abismo, a
natureza ficando sem o acesso ou ponte que a ligava à grande margem do
Infinito. Tudo sofreu a miséria e a vergonha do pecado original. A todos os
seres, à nossa maneira, choraram: - sunt lacrimal rerum! No dizer do mais
cristão dos poetas pagãos.
Entre todas as criaturas uma há,
porém, que muito me comove pela sua envergonhada pobreza, pela sua serviçal
humildade, pela sua desinteressada dedicação e até pelo permanente esquecimento
a que é votada – a nossa Irmã Pedra de que até o poverelho, Santo Irmão das
águas e do fogo, parece ter-se esquecido!...
Aquela massa monolítica, «tosca,
dura, bruta, informe» de que fala Vieira, julgando-a só pelas aparências, no
sexto dia da criação estremeceu de alegria por poder sustentar nas mãos fortes
e rugosas a obra-prima em que o Senhor moldara a sua imagem e imprimira a sua
semelhança.
Qual não terá sido depois a
vergonha e tristeza da nossa Irmã Pedra ao ver a degradação em que caíra a sua
jóia, o seu ai Jesus!?
Qual não terá sido a sua
desolação quando sentiu que já não tinha a amarra que a ligava ao Céu?
Também de certo modo a nossa Irmã
Pedra chorou … E tanto mais, quanto ela, como nenhuma outra criatura, sentiu e
acompanhou a desgraça do seu benjamim.
Guardando com pudor na nudez do
seu seio, como em relicário secreto, os brilhantes das suas lágrimas, não
deixou de ser para o homem aquilo que Deus quis que ela fosse: uma serviçal
humilde e sempre pronta para tudo. Deixa-se transformar em casa para o proteger
e guardar; serve-lhe de lareira para aquecer e acalentar; é lhe mesa para o
alimentar; estende-se no chão para o trazer nas palminhas; e fornece-lhe até o
material para perpetuar o seu talento ou o seu génio. E sempre calada e simples
e pronta.
Apenas, quando a deixam livre na
sua natural prisão, se abre em confidências com o mar, ou esfume aos seus
gritos de dor na ânsia que lhe ficou de chegar ao trono de Deus. Veste então a
sua capa de arminhos de neve, e assim virginal, rebrilhando às caricias do
Irmão Senhor Sol, quase levada pela sua luzente mão, tenta fazer a escalda dos
céus e bater às portas do firmamento. Mas não consegue porque lhe falta, este
gigante homem. As portas não se lhe abrem porque a voz do seu silêncio, embora
eloquente e majestosa, não tem vibração humana-espiritual capaz de se fazer
ouvir no reino de Deus.
Tal era o drama angustioso da
nossa Irmã Pedra!
As lágrimas da sua vergonha quem
as soube apreciar?
A, quando o homem se serviu da
sua humildade para prestar culto aos ídolos, quem sentiu a humilhação e
angustia da nossa boa Irmã Pedra?
- Sunt lacrimae rerum! Sunt lacrimae lapidis!
Com a Redenção, porém, tudo se
reabilita e se transfigura. No tempo da Eternidade está o altar do Cordeiro
que, segundo a visão do apocalipse, diz: Ecce nova facio ormia .
Já São Paulo, que perscrutou os
gemidos das coisas .
- omnis creatura ingerniscit - fala na redenção das criaturas em Cristo –
instaurare omnia in Christo.
A nossa Irmã Pedra, por Cristo e
pela Igreja, corpo mistico de Jesus, é exaltada numa redenção maravilhosa.
Ei-la que, como Sara e Isabel, se
sente liberta da vergonha e do opróbrio e, como a Virgem Maria, pode cantar o
seu Magnificat : quia respeacit humilitatem aucillae suae … facit milui magna
qui potens est.
Ei-la, pois, redimida, cantando
em êxtases de luz e formas os poemas das catedrais!
Ei-la, erguendo aos céus em
oração as mãos postas das suas ogivas e atirando ao alto as jaculatórias das
agulhas e coruchéus!
Ei-la, abrindo os braços para
sustentar os sinos que lhe servem de voz!
Ei-la, rasgando-se em janelas
para que a luz do alto ilumine os filhos de Deus!
Ei-la, prostrando-se em adoração
nos degraus do Santuário!|
Ei-la, sendo a casa de Deus no
meio dos homens – Tabernaculum Dei cum homnibus!
Ei-la, enfim, divinamente
glorificada, sendo ela própria, a nossa Irmã Pedra, sacramental forte e
permanente de Cristo – altar de sacrifício e mesa de comunhão!
Tal é, no mistério da Redenção, a
grandeza da Pedra.
À luz de Cristo, todas as coisas
recebem uma iluminação divina. Pela sua graça todos os seres têm uma projecção
sobrenatural. Não é simples figura de retórica a estrofe diz: Terra, pontus,
astra , mundus, quo lavantur flumiul.
Irmã pedra sacramento de Cristo.
A expressão máxima da sublimação
da Pedra está na sacramentalidade da sua função litúrgica: a Pedra pode ser
altar, imagem e representação do próprio Cristo, segundo a palavra do
Pontifical na ordenação do subdiácono
- Altar quidem sancta Ecclesial
ipse est Christus, teste Johanne, qui in apochalipsi sua altare aureum se
vidisse perhibet: staus aute thronum, in quo et per quem oblationes fidelium
Deo Patri consecramtus.
Não será, pois ousado afirmar
que, se a Sagrada Eucaristia é a presença real e verdadeira de Jesus em corpo,
sangue, alma e divindade, a Pedra sagrada altar é o símbolo material e por
consequência um sacramental do próprio Cristo.
Na verdade, Cristo, segundo a
expressão do Concilio de Trento, é o Sacerdote, a vítima e o altar do seu
sacrifício. Ele é, na visão apocalíptica, o Cordeiro e o altar vivo dos Céus, e
na dogmática a natureza humana de Cristo é o material que se transformou em
altar sob a unção divina do Espirito e pela vontade do PAI. O grande e
verdadeiro e autentico altar é Cristo. A grande e verdadeira e autentica Pedra
é Cristo – pedra angular – que se abre em fonte de graça para os homens, e em
cântico de glorificação para o Pai, tal como o apostolo o vê na imagem ou símbolo do rochedo de onde Moisés faz jorrar a nascente de águas vivas para os
filhos de Israel – bibebant antern de consequente e os Petra, Petra autem erat
Christus.
Jesus, porém, é Pedra principalmente
no seu sacrifício redentor, sobre a montanha do Calvário, aí é que Ele exerce
primeiramente a sua missão sacerdotal. Aquele é que foi o grande eterno e único
sacrifício em que Ele próprio foi sacerdote, vítima e altar. No seu infinito
Amor pelos homens, quis porém, o Senhor que aquele sacrifício permanecesse
oferecendo a redenção aos homens de todos os tempos e lugares, e para tanto
projectou no plano litúrgico das realidades místicas o sacrifício histórico da
Cruz; tornou-o presente e permanente na liturgia da Ceia e da Missa. E neste
plano litúrgico, é evidente, Cristo continua sendo o altar do seu sacrifício,
como é de fé. No entanto a nossa Irmã Pedra material, que é ara de sacrifício e
mesa de comunhão, tornou-se com a sagração litúrgica o símbolo mais expressivo
da permanência de Cristo como altar. Irmã Pedra sacramental da Igreja.
.