quarta-feira, 12 de agosto de 2009

PE. CORREIA DA CUNHA E COMEMORAÇÃO VICENTINA

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COMEMORAÇÃO

VICENTINA

DOS ‘’AMIGOS DE LISBOA’’



PADRE JOSÉ CORREIA DA CUNHA (1917-1977)

CONFERÊNCIA, NA SEDE, PELO PADRE CORREIA DA CUNHA, NO DIA DO PADROEIRO DA CIDADE DE LISBOA
22 JANEIRO - 1954







Não sei porquê; confesso que não atino bem com as razões que levaram a ilustre Junta Directiva desta Casa a incumbir-me de falar a VV. Exªs do glorioso Padroeiro de Lisboa.


Ao certo, ao certo, não sei. Mas quer-me cá parecer que, se aqui estou na berlinda, é apenas por estes três motivos: por ser alfacinha de gema, por morar no Mosteiro de S. Vicente de Fora, e por ser Padre Capelão da Marinha; que outra razões mais não enxergo…
Pelo contrário, reconheço, sem falsa modéstia, que me falta o saber e me não sobeja nica de tempo para estudar com profundeza o tema, aliás tão interessante, que nos reuniu aqui. Outro qualquer faria melhor.


No entanto, os motivos apontados são de si suficientes para me imporem o dever de aceitar tão honroso encargo. Ou não será dever de todo o alfacinha que se preza, como verdadeiro amigo de Lisboa, conhecer um pouco, ao menos da bela história e das lindas tradições lisboetas? E não cumpre ao hóspede da Claustra Vicentina venerar com público e devoto reconhecimento o Santo seu Anfitrião e Orago?


E que dizer do Padre que não tivesse a mais pequena notícia de uma das maiores figuras Martirológio, para mais Capelão da Marinha que já sulcou as águas do Mar Oceano no mesmo sentido e rumo que seguiu a Nave do invicto Mártir S. Vicente?

E eis porque aqui estou, pondo á prova a paciência de VV.Exªs,!

Prometo, porém, desde já, fazer todo o possível por que tal provação lhes mereça a palma do Martírio nem as honras dos Altares.
E daí…nada se sabe! Verdade seja que a minha fala não pretende ser conferência (ao contrário do que foi anunciado), mas simplesmente palestra, conversa fiada, que eu desejaria fosse cavaqueira amena. Porém, ao fim e ao cabo, VV. Exªas é que dirão de sua justiça!

PORQUE GOSTO DE LISBOA

Nado, baptizado e criado nesta urbe feiticeira, sou Amigo de Lisboa desde que me conheço.
Cedo, bem cedo, me deixei enfeitiçar pelo sortilégio desta cidade.
E, desde então, sempre me habituei a vê-la no mistério da sua dupla personalidade: senhoril no porte, coroada de uma auréola de luz e cor verdadeiramente únicas no mundo, e, ao mesmo tempo, simples e modesta, atavios ou enfeites pretensiosos, nimbada apenas da beleza natural que Deus lhe deu. Dir-se-ia uma Rainha de Sonho que por entre as outras passa, esbelta e cheia de encanto, com a graça de uma varina.

E esta imagem faz-me lembrar aquela velha lenda que, embora conhecida, não resisto á tentação de contar.



Era uma vez…

(E a lenda reporta-nos á velha Idade Média, quando os Senhores Cavaleiros se davam á folgança de torneios e justas em honor de suas Damas por quem suspiravam coitas de amor e a quem ofertavam gestas valorosas).



E foi o caso que, de certa feita, todos os Príncipes do Sacro Império se reuniram em grande e original torneio, não para se determinar qual o mais valente e destro, no manejo das armas, ou mais inspirado e hábil nas cantigas de amor, mas para se decidir qual de entre eles era o mais nobre.

E aconteceu que, num cortejo esplendoroso, montados em cavalos ricamente ajaezados, esses cavaleiros lá foram desfilando pelo vasto terreiro, seguidos do numeroso séquito de seus vassalos. Faziam alarde vaidoso de suas riquezas e troféus e ostentavam com orgulho os pergaminhos da sua linhagem. Até que chegou o momento de se apresentar um cavaleiro ainda novo, príncipe também de sangue e de alma, embora pobre, que não levava luxos nem grandezas, mas se fizera acompanhar por todos os seus leais súbditos. Chegado que foi ao centro do terreiro, acenou á multidão para que se calasse um pouco.
E mal se fez silêncio, disse:


- ‘’ Senhores! De todos é sabido que eu pouco tenho ou nada; mas considero-me o mais rico e nobre dos Príncipes da Cristandade, por ter um Paço em cada casa dos meus vassalos e em cada peito deles, um coração amigo! ‘‘


E reza a lenda que todos o aclamaram vencedor.

Pois quer-me parecer que a história, com pequenas alterações, se pode aplicar a um imaginário torneio entre as cidades do mundo. E estou certo de quem, depois de terem passado as grandes capitais vaidosas de suas grandezas, quando chegasse Lisboa, na sua Nau Catrineta, sorrindo como Ela sabe,


Toda a gente com certeza,
Desde os Chins as Esquimós,
Diria a uma só voz:
- Tu és do mundo a Princesa!


De resto, deixem dizer-lhes muito aqui á puridade (não venham acusar-me de plagiário…), esta ideia não é nova; já foi cantada em oitava rima pelo nosso Épico:


E tu, nobre Lisboa, que no Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada foste do facundo
Por cujo nome foi Dardânia, acesa,
Tu, a quem obedece o Mar profundo…

(C. III – E. 57)


Mas, se, nem no tempo de Camões, tal cortejo se realizou, bem será que se não faça nunca, para que apareça por aí, através da imprensa, da rádio ou da televisão, a infausta notícia de que a nossa Lisboa vai partir para Hollywood, contratada por algum magnate do cinema…

Pois (como ia dizendo), eu gosto de Lisboa; sou deveras seu Amigo.
Quantas vezes me não pondo a olhar para Ela e, absorto, a não contemplo, dali, do morro de Almada! Como se mostra bela e formosa, quando, pela tardinha, toda inundada d sol, se revê embevecida nas águas especulares do seu Tejo!

Que maravilha!

Quem ainda a não viu dali, defronte, não conhece bem a sua beleza, e não sabe o que perde…


O rio, antes de se fazer ao mar, por despedida, atira-lhe furtivos beijos (não vá o Sol ter ciúmes) e oferta-lhe, como presente para o enxoval, alvas rendas de bilros que as suas Tágides tecem ao som da melopeia múrmura das ondas. E Ela, que lhe percebe o gesto, mostra-se ao Sol sorridente e mimalha (para que Ele não fique amuado), e desce á pressa dos seus paços do Castelo, embrenha-se no labirinto de Alfama, benze-se á porta da Sé, encomenda-se a Santo António e vai, num pulo, ao Terreiro do Paço estender-lhe os braços gentis. Depois, tiquetaque pela calçada, sobe a Santa Catarina para o ver mais a preceito e lhe dizer: ‘’ Aqui estou. Eu não te deixo !’’

E com o Rio tem de andar, também Ela acompanha, sempre correndo ligeira, quanto as forças lho permitem, até quase sair da barra. E vendo que mais não pode, na Torre de S.Vicente, ali adiante a Belém, se fica triste e saudosa, de lenço branco na mão, acenando, acenando…até ao pôr-do-sol.

Depois volta, ao lusco –fusco, ainda mais bela e formosa, porque a luz do seu olhar tem um véu feito de pranto; e fica por momentos a rezar á Senhora de Belém pelo seu noivo marinheiro – o Tejo.



COMO EU GOSTO DE LISBOA!

Quanta vez, entrando a barra, eu não senti a graça do seu perfil, o calor do seu olhar, o encantamento da sua luz, a sedução da sua voz! É que Lisboa tem perfil de sereia, uma luz diáfana e quente uma voz fresca de rapariga.


Ainda há pouco, vindo de Nova Iorque, cidade do barulho e da enormidade, onde tudo nos esmaga e nos arranha (pois se até arranha-céus…), eu senti a deliciosa fascinação da nossa Lisboa.

Não será bonito, mas manda a verdade que se diga. A mim vieram-me as lágrimas aos olhos, quando ás oito da manhã (Ela acordara cedo para nos saudar), Lisboa me sorriu e disse: - ‘’ Bem-vindo sejas, Amigo! ‘’… e a luz do seu olhar beijou meus olhos.

Não se julgue, porém, que isto se deu só comigo. Não! Todos os camaradas do Aviso Gonçalves Zarco viveram a mesma alegria. Se o não dizem, é só por acanhamentos…


Como eu gosto de Lisboa!


Quanta vez, fazendo a ronda dos bairros, eu não sinto mais orgulho dos meus pergaminhos de Lisboeta!
Gosto tanto de a ver de perto…
Airosa Menina e Moça, é sempre gentil e formosa, quer calce as tamanquinhas e, de canastra à cabeça, vá da Ribeira á Madragoa apregoando – ‘’ Viva da Costa’’ – quer se fique horas perdidas junto ás portas da Rua da Regueira ou do Largo da Adiça, como senhora comadre, contando histórias da carochinha.


É sempre bela Lisboa!


No Bairro Alto é fadista; em S. Vicente, fidalga; na velha Alfama é marinheira; na Graça e Arroios é garrida; em Alcântara e Xabregas, operária, no Castelo é Princesinha; na Madragoa, varina; nas Avenidas, donzela, na Estrela, Senhora-Dona; e, quando fora
de portas, tem rebitesas saloias.

Em toda a parte sorri; em todas as ruas canta; em todo o lado moureja (jeito que lhe ficou de pequena). E, quando, pela tardinha, desce o Chiado catita, Lisboa é ‘’Flor d’Altura’’ – ‘’vai formosa e não segura! …’’.

Se a figurinha delicada e airosa de Lisboa assim nos cativa, qual não será o nosso encantamento perante a beleza das suas lendas, tradições e história, dessas três irmãs Siamesas que tecem com todo o enlevo o manto auri fulgente desta Rainha de ontem, de hoje e de sempre?

Como eu gosto de Lisboa, da sua história, das suas tradições, das suas lendas, da sua alma, enfim, sobre a qual pairou sempre e paira ainda a bênção do Senhor!

Ou não será expressão da verdade a poesia do nosso saudoso Irmão, Noberto de Araújo, que nós trauteámos com altivo entusiasmo:

Lisboa nasceu,
Pertinho do Céu,
Toda embalada na Fé.
Lavou-se no Rio
- Ai, ai , ai Menina,
Foi baptizada na Sé!



É verdade, é sim, Senhores! Lisboa é obra da graça de Deus!

Em cada página da sua multissecular biografia, como em Livro de Horas, há iluminuras cristãs, registos de santos, perfis de torres e de igrejas, imagens de devoção e altares de ex-votos. Sempre e a cada passo se encontra o Crisma do Sinal da Cruz e em cada pedra a sigla do Cristianismo.

A Fé Cristã de Lisboa a manifestar-se através dos tempos, nas igrejas, nas procissões, nas devoções populares e nas solenidades litúrgicas, que belo tema para ser desenvolvido!...

Foi essa vida de Fé que a fez grande.

Há anos, falsos amigos quiseram tirar-lhe esse espírito cristão.
Mas, graças a Deus, se conseguiram dar-lhe os ares de Virgem Louca, não conseguiram, por mais que o intentassem, apagar-lhe a lâmpada da Fé que recebera no Baptismo.

Mas não falemos em coisas tristes.

E perdoem-me VV. Exªas. Se me demorei muito a falar-lhes do meu embevecimento perante esta cidade de magia. Decerto, terão razão para dizer, com Virgílio: ‘’Jam satis prata biberunt ‘’ E passemos adiante, pois V.V.Exas querem ouvir falar do Santo Padroeiro da Cidade, cujo é o festivo dia de hoje.



SÃO VICENTE - FACHADA IGREJA SÃO VICENTE FORA



SÃO VICENTE E AS TRADIÇÕES LISBOETAS



A Lisboa nada falta, nem sequer aquela aura misteriosa de ter sido princesa mourisca, conquistada à Fé Cristã por valente e pundonoroso cavaleiro.

Quando D. Afonso Henriques tomou a à sua conta esta Menina e Moça (e não foi lá com duas cantigas: que os tiranos, que a dominavam, a não queriam largar por nada, e muito menos à mão de Deus Padre…), mas enfim, quando ele conseguiu tê-la a são e salvo, pensou logo baptizá-la para a fazer cristã, e (claro está) arranjou-lhe padrinhos, pois quem não tem padrinhos morre mouro.

E assim foi.

Depois de tomar posse da cidade, a 25 de Outubro de 1147 (como rezam as Crónicas e o comprova o profundo estudo do Sr. Dr. Augusto de Oliveira) e depois de pôr tudo em ordem, o grande Rei tratou de levar Lisboa à Pia Baptismal.

No dia 1º de Novembro desse mesmo ano, organizou-se luzidia procissão do Castelo até á Mesquita Maior, para transformar esse templo de Mafoma em Igreja de Cristo, et ipso factu, baptizar a Princesinha.

E tanto que Lisboa se tomou (escreve Duarte Nunes de Lião na sua crónica dos Reis de Portugal) El-Rei com todos as cristãos, com solene e devota procissão, foi à Mesquita Maior, que ora é a Sé: e depois de mundificada dos sacrifícios que nela se faziam a Mafamede, os bispos e sacerdotes revestidos entraram nela cantando o cântico TE DEUM LAUDAMUS. E depois de consagrada e dedicada à Virgem Santa Maria Nossa Senhora, se celebraram nela os ofícios divinos e se disse Missa solene, e se nomeou por SÉ CATEDRAL…

António Coelho Gasco, na Primeira Parte das antiguidades da Muy Nobre Cidade de Lisboa, descreve com mais pormenores ainda esta solene procissão. E todos os cronistas e historiadores, que se ocuparam do assunto, concordam com a descrição do cronista citado e a confirmam (1).


(1) – Conf. Nicolau de Oliveira, in Grandezas de Lisboa: Damião de Góis, dês



A quem tenha mais tempo e paciência deixo o cuidado de procurar documentação decisiva sobre esta tese. Creio, porém, poder afirmar-se com toda a segurança que, pelo menos, na Capela de S. Vicente da Sé Patriarcal de Lisboa, o invicto Padroeiro da Capital era celebrado neste Rito Romano-Visigótico ou Mosarábico.


Embora ainda não tenha visto escrito algum em defesa desta tese, devo declarar que já em tempos o incansável Apóstolo da Liturgia em Portugal, Mons. Dr. Pereira dos Reis, em conversa interessantíssima sobre o assunto me revelou que tal devia ser o culto de S. Vicente. Pena é que S. Exa escreva tão poucas vezes, pois decerto a sua erudição resolveria todas as dúvidas. Espero, porém que ainda venha a público dizer de sua justiça. Entretanto, e para despertar o interesse de pessoas mais autorizadas e competentes, aqui deixo formuladas as razões que me dão a certeza não só da existência daquele Rito em Portugal, mas da sua prática em Lisboa, em honra de S.Vicente:

I – Já ficou dito, e está confirmado pelo Mestre Júlio de Castilho, que a tradição da vinda das relíquias de S. Vicente para Lisboa não é destituída de valor Histórico. Ora, segundo tal tradição, quem informou Afonso Henriques da existência do corpo do Santo foram os Mosárabes, cristãos que viviam na Lisboa mourisca.


Decerto, que eles já celebravam o grande Mártir no Rito que tinham, tanto mais que, durante a dominação sarracena, por razões óbvias, eles não podiam adoptar outro.



II – Que o Rito Romano-Visigótico existiu em Portugal, é facto indiscutível. Há documentos insofismáveis. Um deles foi descoberto, há anos, pelo sábio investigador coimbrão, D. António Garcia Ribeiro de Vasconcellos, na cidade da Rainha Santa. Este documento, que vem citado e fotografado no Livro El Canto Mozárabe, de Cassiano Rojo e Germán Prado (Barcelona, 1929), pode servir como prova de que, em Coimbra, existiu também aquele Rito. E se nos lembrarmos de que o Convento de Santa Cruz era dos mesmos Cónegos Regrantes a quem estava confiado o de S.Vicente de Fora; se recordarmos que aqueles monges exerceram uma influência importantíssima na vida religiosa e cultural dos nossos primeiros reinados, talvez possamos concluir que o Santo Patrono do mosteiro lisboeta fosse louvado também em Coimbra com o Rito Romano-Visigótico.

III – Outra razão, não menos interessante, é a que nos oferece a feliz coincidência de, no Ofício do Santo, tanto no Patriarcado como na Diocese de Faro, se cantarem ainda hoje algumas estrofes do célebre hino de Prudêncio, adoptado também, desde o século V, no ofício do Rito Romano-Visigótico.


IV – Também ouvi dizer não sei a quem (garanto, porém, que não o sonhei nem inventei) que, antes das obras levadas a cabo por Baltasar de Castro, havia na capela vicentina da Sé Patriarcal uma roldana de campainhas cuja utilidade ninguém conhecia.
Ora no Rito Mosarábico usa-se um carrilhão em forma de roldana para tocar continuamente durante o Cânon da Missa. Não será, portanto de concluir-se que o orago da referida capela era celebrado naquele Rito?


V – Uma achega mais me forneceu a preciosa informação de D. Gabriel de Sousa, Reverendíssimo Padre-Abade de Singeverga. Disse-me há pouco, Sua Paternidade, em amena conversa sobre este assunto, que o Reverendo Pároco da Freguesia de S.Vicente da Chã, concelho de Montalegre, também não sabia o que fazer a uma roldana de campainhas que havia lá na igreja.

Não será esta roldana mais uma prova preciosa de que o culto de S.Vicente foi durante muito tempo o masarábico?


É, pelo menos, sintoma muito interessante a existência de uma roldana numa igreja perdida em Trás-os-Montes, cujo orago é o grande Diácono.


VI – As razões apontadas podem não ser concludentes, mas julgo que não ficarão dúvidas algumas perante os documentos que a devoção a S.Vicente e a solicitude por quanto lhe diz respeito levaram o Sr. Dr. Adriano de Gusmão a oferecer-me. Não posso deixar de lhe agradecer aqui publicamente o espírito de colaboração com que deles me deu notícia e a amizade com que se deu ao trabalho de mos trazer.

Bem-haja!


E aqui têm VV. Exas. esses dois preciosos documentos, que rezam assim, textualmente:


«Havia a Capella chamada a Missa de S. Vicente, que quotidianamente celebrarão os Bacharéis por alternativa no Altar, onde estava o seu corpo, com o privilégio de ser a própria do Santo em qualquer dia, ou festividade do anno sem excepção alguma. Constava esta Missa de algumas orações, que não há nas outras missas: era de um só Padre; porém cantada a canto chão pelos meninos do coro, tocando-se em todo o tempo do Canon huma roda de campainhas, que estava na claustra por detrás da Capella do Santo, e se observava indispensavelmente. No seu oitavário era a Missa dos três Padres, cantada a canto de órgão pelos mesmos meninos do coro; e tudo se fazia por uso antiquíssimo»


J.Baptista de Castro, Mappa de Portugal, III TOMO, pag. 347, 2ª edição 1762.

«Nesta SÉ se canta, todos os dias do anno huma missa em o seu Altar do Glorioso Mártir S. Vicente, officiada pedosmoços do choro a hora matinas, com diffferente Rito do Romano…»

«Memorias para a História Eclesiástica de Portugal – Que sítios , ou perguntas sobre os monumentos históricos da Se de Lisboa»


(È anterior ao terramoto)


Em face do que fica exposto, não será, pois, ousio meu afirmar que em Portugal, ou pelo menos na Capela Vicentina da Sé de Lisboa, até ao terramoto de 1755, S.Vicente era honrado na Liturgia Romano-Visigótica.

E sendo assim, creio não haver grandes dificuldades em restaurar esse culto pelo menos, na referida Capela. Seria reatar uma devoção tradicional ao nosso Padroeiro e, ao mesmo tempo, restaurar um privilégio honroso para a nossa cidade.

Outra questão, também de certo interessante, que surgiu no meu espírito, durante os estudos a que procedi para este pobre trabalho, seria determinar qual a razão por que D. Afonso Henriques confiou o Mosteiro de S. Vicente de Fora aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. É que talvez não fosse de todo alheia a tal decisão a devoção ao Santo Diácono…

Estas coisas são como as cerejas: vêm umas atrás das outras. E o que é certo é que vim a reparar nisto: - Adão de S. Victor, o inspirado poeta das sequências vicentinas, falecido em 1173, era também Cónego Regrante na Abadia de S. Victor de Paris.

Nada me custa crer que o nosso primeiro Rei, tão ligado aos franceses por laços de sangue, pelos elos da amizade com S. Bernardo e outros, e ainda pela valiosa ajuda dos Cruzados, tenha confiado o Mosteiro que ele dedicou a S. Vicente à Ordem Religiosa a que pertencia aquele poeta do Santo. É até muito provável que os Cruzados também fossem devotos do Santo e cantassem as tais sequências tanto em voga naquela época.

Se assim fosse (e nihil obstat), ficaria satisfeita uma das muitas curiosidades do espírito bisbilhoteiro dos historiadores…

Mas voltemos ao culto de S. Vicente. E agora especialmente em Lisboa.

Padrinho da cidade desde o seu Baptismo, o Santo Diácono foi celebrado com todas as honras litúrgicas, como era natural.
O seu dia natalício era, na Sé de Lisboa, precedido de uma vigília com missa apropriada, cujo texto, afora as orações que eram exclusivas, eram os da vigília de S. Lourenço, um dos Santos de maior devoção da Igreja primitiva. Está registada em missais antigos.

Propriamente no dia da festa (22 de Janeiro), em S. Vicente de Fora, onde o santo era considerado Cónego Regrante, e na Sé em que fazia parte do Cabido, a Celebração do Padroeiro era e é ainda hoje duplex de 1ª classe com oitava privilegiada, rezando-se ofício próprio e tal MISSA LAETÁBITUR.

No dia da oitava, 29 de Janeiro, realizava-se na Sé, certamente promovida pelo Cabido, grandiosa e solene procissão com as relíquias de S.Vicente.

Foi encontrar num in-fólio da nossa Catedral a notícia desta procissão, cuja tradição infelizmente se perdeu:


Reza assim o texto:


DIE XXIX JANUARI

PROCESSIO S. VINCENTII MARTYRIS


COMMEMORATIONES

DE EODEM SANCTO

ANTIPHONA


Oscae Vincentium genuit,

Caesar Augusta stola exornavit,
Valentia martyrio coronavit,
LISBONNA, sepultura decoravit.

Justus ut palma florebit.

Sicut cedrus Libani multiplicabitur.


A festa da trasladação em 16 de Setembro, embora não tivesse tanta solenidade exterior, era e é ainda celebrada como duplex maior com missa própria, isto é, composta de textos apropriados á celebração do acontecimento, textos esses que, com excepção apenas do Cântico do Intróito e do trecho do Evangelho, são todos diferentes dos da festa de Janeiro. Isto segundo o próprio de um missal que possuo, editado na tipografia Plantiniana em 1716.

Finalmente, em Lisboa, a devoção ao Santo Padroeiro foi tão grande que o seu dia foi guardado como dia SANTO.



Pena é que a devoção a S.Vicente, Padrinho da Cidade e seu tão desvelado Protector, tenha decaído tanto nos últimos tempos.



A INGRATIDÃO NÃO FICA BEM A NINGUÉM E MUITO MENOS A LISBOA QUE DESDE TENRA IDADE, FOI ANIMADA E PROTEGIDA POR TÃO GRANDE HERÓI DA FÉ CRISTÃ.







http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Olisipo/1954/N66/N66_master/Olisipo_N66_Abr1954.PDF













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