sábado, 7 de maio de 2016

PRIOR – CÓN. MARTINS PONTES












CÓNEGO Joaquim Martins Pontes

“ O ULTIMO SERMÃO DO SR. PRIOR”



No último texto recordei o mestre de vida do Padre Correia da Cunha: Mons. Pereira dos Reis.

Mons. Pereira dos Reis foi um exímio educador dos seminaristas, do Seminário Maior de Cristo Rei, nos Olivais. Todos os clérigos que o tiveram como reitor são unânimes em reconhecer e afirmar quanto ele os marcou. O Prof. Marcelo Caetano, seu paroquiano, após a sua morte, escreveu: Extraordinário homem de ciência e virtude, gigante que a morte agora fez tombar, foi uma das figuras maiores do clero português dos últimos tempos.

Hoje, evocamos afectuosamente outra figura do clero, o Prior da Paróquia de Arroios – Cón. Joaquim Martins Pontes. O Zézito foi seu discípulo, para além, de ter sido ele a baptizá-lo (12 de Dez. 1917) na  Paróquia de Arroios. Foi o Senhor Prior que fortaleceu o ânimo para a sua entrada no seminário. À estima veio juntar-se a profunda gratidão pela orientação que recebera do Cónego Pontes, desde a sua infância.

Pelo convívio de longos anos fundiu-se um forte sentimento de amizade inalterável. Como prior de São Vicente de Fora , o Padre Correia da Cunha sempre  recordava o seu pároco Pontes pela sua imensa inteligência. No texto que hoje publico, da sua autoria, verifico que sempre o acompanhou… até aos derradeiros dias da sua vida.

O texto, datado de 25 de Outubro de 1944,  sobre a agonia do Con. Martins Pontes, faz me trazer à memoria momentos semelhantes que ocorreram na Paróquia de São Vicente de Fora, trinta e três anos depois, onde estive envolvido. Creio que  poderia ter escrito peça literária semelhante, narrando factos ocorridos naquela sexta-feira, dia 1 de Abril de 1977 em que o Padre Correia da Cunha na reunião do Conselho Paroquial de uma forma efusiva e com uma extrema delicadeza  agradeceu, a um por um, o  empenho na vida da comunidade e pedindo-nos perdão das suas faltas. Que estaria a sentir aquele bondoso coração?

Retirou-se, bastante abatido e estafado cerca das 23,30 Horas, para os seus aposentos, onde, em total solidão, partiu para o outro lado. A sua ausência para a celebração da missa das 9,30 horas de sábado foi o alarme para algo que só o silêncio do seu dormitório testemunhou...a sua partida para a eternidade.

O Con. Martins Pontes apresentou-se no outro lado da vida com o seu penitente burel de terceiro franciscano e acompanhado com a luz da vela, símbolo da Luz de Cristo que tão bem soube espalhar ao longo da vida pelas várias comunidades cristãs.


       O Padre Correia da Cunha, trinta e três anos depois, apresentou-se no outro lado da vida no seu estado natural do paraíso, símbolo da inocência, simplicidade, desprendimento dos bens materiais, renúncia, humildade e perdão… valores que transmitiu ao longo da sua vida pelas comunidades onde passou.





LIÇÃO DE VIDA NA MORTE (texto autoria Padre Correia da Cunha)

Faz hoje um mês. Naquela tarde de domingo, chuvosa e triste, o Reverendo Pe. Augusto de Araújo, que na véspera o confessara, fora saber dele.

- Então, Senhor Cónego Pontes, bem-disposto, não é verdade? – Perguntou o bom frade, num tom de voz que fez ecoar aquelas simples palavras no mais recôndito da alma do enfermo. E o Senhor Prior – olhar distante, aquele pensativo olhar perscrutador do além das coisas, esboçando um gesto com a mão tremente, aquele gesto tão seu com que procurava apanhar a palavra precisa para expressar a ideia – O Senhor Prior, com a consciência plena da pergunta, responde indirectamente: - Sabe Senhor Padre Augusto eu escrevi, em tempos que morrer é voltarmos-mos para o outro lado, o lado eterno da vida. Chegou agora a minha vez…

Não fora bem assim que saiu escrito. É ver na «Lumen» no segundo artigo sobre «o valor divino e humano de um pronome: - Nós» e verificar-se-à. Escreveu ele: «morrer … é voltar-se para o outro lado – o lado da eternidade». Mas a sua fulgurante inteligência e o seu grande poder de expressão souberam dar aquela frase uma «nuance» mais bela na forma e mais rica do conteúdo cristão e humano.

A poucas horas de dar essa angustiosa volta, num passo decidido e confiadamente cristão, aquela alma de padre e de sábio (no sentido filosófico da palavra) ainda falava assim. E assim falou até ao fim…

O Senhor Cónego Pontes é um autêntico Diógenes. Lá vive arrecadado no seu buraco, mas tenho para mim que é um dos padres mais cultos do país: - ouvi eu algumas vezes da boca do Eminentíssimo Cardeal Patriarca.

Efectivamente, a par do sábio de rara e profunda cultura literária, filosófica e teológica sempre actualizada e eloquente havia nele uma simplicidade virtuosamente infantil. Tão depressa se embrenhava nos domínios da especulação como descia franciscanamente a travar com a natureza diálogos fraternos.

Alma delicada de artista, a sua conversa era sempre interessante e sugestiva. Parece-me que estou a vê-lo: - nas Caldas da Rainha no jardim do Hotel Lisbonense, ao por do sol, cansadamente recostado na cadeira de palha. Eu acabava de ler-lhe algumas das, para mim, mais impressionantes poesias de Rainer Maria Rilke. E ele criticou: - Que delicadeza que sensibilidade… essas imagens novas palpitantes, são realmente de um grande poeta. Vale a pena aprender alemão, José, vale a pena.

E continuou: - Poesia não a faz quem quer, mas quem nasceu poeta, com o dom de Deus… Poeta é quem entende o que diz o nosso irmão Senhor Sol a nossa irmã Madre Terra. Poesia é sentir e desvendar o mistério… e tudo é mistério…

Que dirá o vento aqueles aloendros em flor? – Umas vezes murmúrios de afago, outras violências de paixão…

E calava-se, para continuar a conversa a sós consigo próprio. Eu sentia que ele conversava mais com as coisas que eram objecto desses diálogos do que comigo.

Uma tarde falamos de anseios, de ideal, desta tortura humana de querer voar e sentir as asas presas. E o Senhor Prior aponta-me umas palmeiras e diz: - José, o homem é como a árvore, embora firme no chão, deve crescer para o alto.
- Mas as palmas e as tâmaras debruçam-se para baixo, observei.
São as sombras que acolhem os frutos que saciam. Debruçar-se não quer dizer cair. A síntese da vida é o Amor numa ascensão para Deus e num debruçar-se para os homens.

Já se pusera o Sol, mas ainda não era noite. Era um entardecer suave em tons violáceos de harmonias íntimas; hora em que se ouvem a voz das coisas e a voz de Deus em colóquios misteriosos, adentro do claustro da nossa consciência. Passa uma nuvem. E uma tristeza que não é triste paira sobre nós. Há um indefinível misto de melancolia e prazer íntimos.


- Aqui há dez anos, tive o meu São Martinho… Agora chegou o Outono. – É o cair da folha…






- Então Senhor Prior, já de volta? – É verdade. Cá estou à espera!...

Só quem lhe viu o olhar e ouviu o tom da sua voz, percebeu a intenção daquelas palavras.
Ele bem sabia que a irmã morte estava a bater-lhe à porta.

Quando vindo das Caldas, verificou que não tinha forças para subir as escadas da dependência da igreja, que ele transformara em aposentos, compreendeu perfeitamente que já não as desceria por seu pé. E, no entanto, durante aqueles últimos dias, não deixou de se interessar por quanto dizia respeito à vida da sua paróquia. Numa delicadeza que era caridade, só uma coisa lhe era cuidado e preocupação: o querer ocultar aos amigos e família o reconhecimento próprio do seu estado. Não queria que eles sofressem com vê-lo sofrer. Nem uma alusão, nem uma queixa sequer. Só na sexta-feira, vinte e dois, ao ouvir o toque dos sinos, aquando da saída do Sagrado Lausperene, é que não se conteve e num movimento dolorosamente impressionante, escondeu a cabeça debaixo da roupa. Quando se destapou, tinha os olhos marejados de lágrimas. Que teria dito aquele grande coração a voz dos sinos da sua igreja?

No sábado, ante véspera da decisiva volta, pediu ao Senhor Bispo, que o fora visitar, o favor de mandar vir o Reverendo Padre Augusto de Araújo.

Um quarto de hora depois confessava-se, como quem se limpa da poeira deste vale de lágrimas para entrar na casa do Senhor.

Saído o Padre, chamou os seus mais íntimos amigos e cooperadores e, a um por um, pediu-lhes perdão de qualquer falta…
Todos choravam. Só ele estava sereno, resignado e confiante.




No domingo, de manhã, começaram os vómitos de sangue, mas ainda pôde receber o Sagrado Viático e a Sagrada Unção.

Já lhe custava muito a falar, mas foi ainda na tarde desse dia que disse estas memoráveis palavras. Pelas quatro da madrugada começou a dolorosa agonia. Com inteira consciência de que ia dar a volta para o outro lado – o lado eterno da vida, manda recitar o impressionante ofício. Segura firmemente a vela acesa – Luz e chama a iluminar-lhe os passos para ir ao encontro do Senhor. Olha o relógio a ver as horas. Com voz bem nítida, embora a custo, repete as invocações das Ladainhas e responde: AMEM no final das orações.

Ao chegar ao fim da leitura da PAIXÃO, julgando-se ser cansaço o que era comoção profunda a embargar-nos a voz, mandou-nos sair a repousar um pouco. Por volta das sete e meia da manhã chama-nos de novo. Sentia-se pior, queria por isso que continuássemos. Como, porém aquela última parte do ofício é mais pequena, terminada ela, volta-se e diz: - Repete as orações do princípio e deixa as invocações para o momento de oferecer a vida a Deus.

Ainda estou a vê-lo: Já nos estertores da agonia pega de novo no relógio com a mão esquerda, porque a direita segurava a vela que não queria largar, e repete roucamente, por entre golfadas de sangue, as jaculatórias do Ritual. – In manus tuas, Domine comendo spiritum meum!...

Disse ainda uma palavra que eu (confesso) não percebi já mas que a sobrinha afirma ter sido Magnificat – esse cântico da virgem de que ele tanto gostava. E repetiu ainda algumas vezes: In manus tuas, Domine…

E inclinou a cabeça e ficou-se… voltado para o lado eterno da vida.

O Senhor Prior…
Ajudei-o a segurar a vela da agonia. Vesti-lhe o penitente burel de terceiro franciscano. Também há vinte e sete anos, ele me vestiu a túnica branca e segurou na minha mão direita a vela acesa.

Pela vida fora toda a túnica branca perde aquela candura inicial. A dele ganhou a cor das macerações e cilícios. Toda a vela é soprada, correndo até o risco de apagar-se. A dele ganhou sempre mais brilho e fulgor.




Simbolismo e realidade do Sacramento que nos introduziu na vida eterna, repetiu-se, há um mês, quando o Senhor Prior deu para ela a volta definitiva.

Há vinte e sete anos que as nossas mãos se tocaram, pela vez primeira para ele me guiar na vida com a luz da fé. Há um mês que se tocaram, pela última, para em nome da Igreja, lhe iluminar eu os passos à entrada do túnel de acesso à estação final da vida.

Guardo religiosamente aquela vela da agonia, tão rica pelo simbolismo litúrgico que encerra, e até pelos sinais bem marcados dos dedos do meu Senhor Prior.
Meu Deus! Quando a irmã morte bater à minha porta, que eu tenha vestida a túnica penitencial e segure na mão a vela acesa.

E que seja aquela que eu tenho, ali guardada. Que eu morra assim, tal qual…

Texto da autoria de Padre José Correia da Cunha – 25 de Outubro 1944

















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