quinta-feira, 26 de março de 2009

PE CORREIA DA CUNHA E A "PROFISSÃO DA MISÉRIA’’

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A «pobreza envergonhada» sofre de alma apertada.




A Igreja Paroquial de São Vicente de Fora estava localizada num zona privilegiada do centro urbano de Lisboa. Era também um local com história, lugar de abrigo e de paragem de muitos pobres oriundos da província, nos anos cinquenta e sessenta. O ponto obrigatório dessa rota era a Estação de Santa Apolónia. Muitos pedintes subiam à Igreja Paroquial de São Vicente de Fora para se socorrem da caridade cristã.



Pe. Correia da Cunha era diariamente interpelado e solicitado por estes novos desgraçados da cidade, com vidas de dor e sofrimento, sem eira nem beira, procedendo à entrega de roupa através do roupeiro da Conferência de São Vicente de Paulo e convidando-os a almoçarem.



Sob o seu comando, lá se deslocava com esses seus irmãos para o Campo de Santa Clara. Na casa de pasto do seu amigo Salgado e sua esposa Glória Salgado, Pe. Cunha transmitia a seguinte ordem:



- Podem comer tudo o que quiserem, mas começando com uma boa sopa e no tocante à bebida apenas um copo de vinho (penalty), sem direito a repetição.



Quando regressava do seu almoço diário, com a direcção das OGFE, encarregava-se de proceder à liquidação das refeições desses seus convidados, para quem o mundo era tão injusto, e evitava sempre a entrega de numerário por não saber o fim a que se destinava.


Recordo que um dia um casal de meia-idade se dirigiu ao Cartório Paroquial de São Vicente de Fora rogando a caridade de Pe. Correia da Cunha, com a seguinte história:

- Eram de uma pequena aldeia junto de Braga. Tinham vindo para Lisboa à procura de melhor vida. O dinheiro que tinham amealhado para esta aventura, com tanto sacrifício, esforço e dor já se tinha acabado e perante a frustração da grande cidade, desejavam regressar à sua terra natal, onde por certo viveriam melhor. A sua grande aflição era que não tinham dinheiro para o fazerem.

Pe. Correia da Cunha, deveras sensibilizado com tão lamentável situação, pediu que aguardassem que ele celebrasse a missa da tarde e depois cuidaria das suas necessidades.

Assim, depois das 19 horas pediu ao casal que nos (a mim e a ele) acompanhassem e lá nos dirigimos para a Estação de Santa Apolónia. Pelo caminho, Pe. Cunha perguntava ao casal qual a estação de comboio mais próxima da sua terra de origem, ao qual eles responderam prontamente.

Eu, que os acompanhava, não sabia onde seria a invasão. Dentro de algum tempo estávamos nas bilheteiras da Estação de Santa Apolónia, onde Pe. Correia da Cunha procedeu à aquisição de dois bilhetes para o destino indicado pelo casal.





Quando se preparava para lhes abonar os referidos bilhetes, transmitiram a Pe. Correia da Cunha que era mentira e não desejavam regressar à sua origem. Pe. Cunha, que na outra mão tinha escondida uma nota de cinquenta escudos para lhes proporcionar o jantar e alguma outra despesa, ficou furioso.



Perante esta nova informação e completamente decepcionado, Pe. Correia da Cunha agarrou no indivíduo pelas golas do casaco e disse-lhe com toda a frontalidade:

- Seu pulha, ganhe vergonha nessa cara e deixe de enganar as pessoas! Há quem seja realmente necessitado e precise de ajuda! Já pensou nisso seu safardanas?!

Por especial favor e delicadeza do funcionário da CP, foi possível reaver o dinheiro contra a entrega dos bilhetes, o que não era habitual nessa época.

- Isto é inconcebível e vergonhoso! Espero que, pelo menos, fique com problemas na consciência. Nunca devemos enganar a boa fé do nosso semelhante.



Na subida para São Vicente, Pe. Correia da Cunha confidenciava-me que tinha muito mais tristeza e pena dos que se escondem na vergonha de pedir ajuda ao seu próximo, e que não sabemos onde se encontram, e cujo a solidão os ataca sem remorsos sofrendo no oculto a sua dramática vida… do que daqueles que fazem profissão da sua miséria…
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